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Edición N° 50 - invierno 2008

Justiça Restaurativa: um caminho alternativo para a resolução de conflitos

Por:
Leonardo Ortegal
* (Datos sobre el autor)


RESUMO
O presente trabalho aborda o modelo de resolução de conflitos denominado justiça restaurativa e seu potencial como alternativa frente ao modelo tradicional (retributivo). Resgata os aspectos históricos da concepção e consolidação desse modelo no Brasil e no mundo, além de abordar aspectos teórico-metodológicos que diferenciam o modelo restaurativo de resolução de conflitos e o paradigma tradicional.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa sobre o modelo alternativo de resolução de conflitos chamado Justiça Restaurativa. Essa modalidade de justiça e sua possibilidade de humanização dos processos de apuração de crimes e conflitos judiciais constituem o seu objeto de interesse privilegiado. Além disso, o histórico dessa alternativa, suas origens, a forma pela qual se relaciona com o modelo tradicional de justiça e as novidades que apresenta são elementos importantes a serem considerados no estudo desse objeto.

Tal escolha se justifica pelo fato de que abordar o tema Justiça representa também um esforço deste pesquisador para que questões relativas aos modos tradicionais e alternativos de se fazer justiça no Brasil e América Latina despertem maior atenção. Isso porque, esta é uma questão que ainda não vem sendo suficientemente compreendida por ela. A busca por mudanças nas instituições repressivas do Estado, o acesso à cidadania e aos direitos humanos por parte daqueles que se encontram em conflito com a lei e, inclusive, a promoção de uma cultura de justiça e paz por uma sociedade igualitária, passa, necessariamente, pela discussão acerca do modelo de justiça e resolução de conflitos vigente.

Discutir, portanto, justiça restaurativa, é uma contribuição para a construção de alternativas à justiça retributiva, ou tradicional, vigente, e aos seus resultados insatisfatórios, visando uma sociedade mais justa. Significa também questionar a forma atual de lidar com as manifestações recorrentes da violência em suas mais diversas expressões - quer estas cheguem ou não até a tutela do Estado. E mais: implica revisar os alicerces das relações inter-pessoais cotidianas, assim como as bases do modelo de sociedade construído e reconstruído nessas relações, onde se assentam tanto diferentes manifestações de conflitos inter-pessoais, quanto o encaminhamento do Estado de retribuir aos indivíduos responsabilizados por um conflito o mesmo dano que causaram.

Na medida em que se apresenta como um novo modelo de resolução de conflitos não-adversarial, na qual as pessoas implicadas decidem conjuntamente as soluções para o conflito e seus impactos - por meio da cooperação para o alcance do que é tido como justo pelas partes - surge a hipótese norteadora deste trabalho de que tais características, entre outras, possibilitam pensar a justiça restaurativa como uma possível via para a humanização da resolução de conflitos. Além disso, o fato de estar fundamentada numa concepção filosófica diferente da concepção tradicional, situa-se como nova proposta de justiça.

Tais aspectos estão relacionados à tentativa de responder à pergunta de partida deste trabalho, associada ao objetivo de conhecer em que medida o modelo restaurativo de resolução de conflitos se configura uma possível via para a humanização da justiça. A discussão a ser realizada constitui também um incentivo ao repensar crítico da justiça atual e à projeção de uma justiça ideal, tendo em vista a superação dialética do que hoje prevalece.

Justiça Restaurativa: como funciona e qual a sua história

Como se trata de algo novo e pouco difundido, principalmente se comparado à justiça tradicional, é importante que se apresente primeiro uma definição atual e a forma como opera a justiça restaurativa, para que, de posse disto, se conheça o seu percurso histórico.

Para definir o que é a justiça restaurativa, nada melhor do que a sugestão presente na resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, quando faz a recomendação da justiça restaurativa a todos os países. De forma bastante tautológica, define que: O “Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos” (p.3). E avança dizendo que esses Processos Restaurativos são quaisquer processos onde vítima e ofensor, bem como demais outros indivíduos ou membros da comunidade que forem afetados pelo conflito em questão, participem ativamente na resolução das questões oriundas desse conflito, geralmente com a ajuda de um facilitador (idem)

Essa definição um tanto genérica e, como já dito, tautológica em seu enunciado, se faz importante, tendo em vista que a história das práticas consideradas restaurativas tem origem em lugares diferentes e também em tempos diferentes. Além disso, mostra que, ao contrário da justiça tradicional positivista, não há regras rígidas ou leis que a cerceie. Melhor dizendo, trata-se de um modelo de resolução de conflitos firmado em valores 1 , que, ao mesmo tempo em que dá liberdade a um lastro maior de formas de justiça restaurativa, mostra a raiz, mais intuitiva e prática do que teórica, do que esta justiça vem a ser.

No entanto, apesar da definição ampla, a justiça restaurativa pode ser identificada por aspectos comuns aos diversos projetos existentes. Tendo isso em mente, Renato Gomes Pinto assim define a justiça restaurativa:

trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, com a intervenção de mediadores, podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, objetivando a reintegração social da vítima e do infrator (2005, p. 19).

De modo geral, os aspectos destacados por Gomes Pinto, expressam a forma pela qual a justiça restaurativa é operada. Esses aspectos serão, portanto, analisados, ao mesmo tempo em que o funcionamento da justiça restaurativa será apresentado.

O primeiro aspecto diz respeito à voluntariedade. Esta, não significa que os operadores da justiça restaurativa devam fazer um trabalho voluntário. Significa que as partes afetadas pelo conflito devem voluntariamente optar por essa modalidade de justiça como meio de resolvê-lo. Isso a diferencia do processo tradicional, pois, caso as pessoas não optem pelo modelo restaurativo, o Estado não pode intimá-las a utilizar essa via.

O fato de ser caracterizado como relativamente informal alude à forma como acontecem os procedimentos. As partes são consultadas por telefone se desejam participar e a solução tida como justa é obtida através do diálogo entre elas, nos chamados círculos restaurativos, câmaras restaurativas, ou mesmo encontro restaurativo.

A intervenção de mediadores (também chamados de facilitadores ou conciliadores) favorece a viabilidade do procedimento restaurativo. O papel da mediação é o de garantir que as partes dialoguem de modo a construir conjuntamente um acordo justo para ambos os lados. Ocorre que o diálogo entre as pessoas implicadas torna-se muito delicado em decorrência dos impactos causados pelo conflito. Por isso, a mediação prima para que esse diálogo não se torne outra forma de conflito, mas um meio para a reparação dos danos e restauração das relações sociais.

E, por último, o resultado restaurativo diz respeito aos encaminhamentos decorrentes desse encontro entre as partes. O termo “resultado restaurativo” é mais amplo que acordo restaurativo, visto que este corresponde ao que foi decidido entre as partes em relação à reparação dos danos ocorridos, enquanto aquele também insinua o cumprimento desse acordo e a efetiva restauração das partes.

O processo histórico de consolidação da justiça restaurativa

A história da justiça restaurativa é um pouco controvertida e contada de diferentes maneiras. A dificuldade principal de se estabelecer qual foi o processo histórico que antecedeu e permeia a noção atual que se tem de justiça restaurativa deve-se, em parte, às diferentes origens do que se chamam práticas restaurativas. Tais práticas derivaram da essência mesma dos conceitos atuais de justiça restaurativa e foram percebidas em diversas épocas e em diferentes lugares do mundo, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Existem, portanto, dada à diversidade de contextos histórico-culturais em que a sua prática foi e é exercida, concepções distintas de como deve ser a justiça restaurativa e que papel deve desempenhar na sociedade.

Por práticas restaurativas entendem-se as diversas formas que as sociedades comunais e pré-estatais utilizavam para resolver conflitos entre seus membros, seja mediante o diálogo, a negociação, seja por outro meio que se opusesse às medidas meramente punitivas. Mylène Jaccoud (2005) indica que, desde a era pré-cristã, comunidades já se utilizavam de práticas restaurativas, registradas inclusive em documentos como no Código Sumeriano (2050 a.C.), ou o Código de Hammurabi (1700a.C.).
Jaccoud também faz referência a práticas restaurativas observadas em comunidades pré-estatais de todos os continentes, como os povos colonizados da África, América do Sul, América do Norte, Europa e Nova Zelândia. Desse conjunto, é importante destacar a experiência neozelandesa, pois esta representa um dos mais importantes resultados de implementação da justiça restaurativa, cuja metodologia foi aplicada em projetos nos Estados Unidos, Canadá e também no Brasil.

Nas comunidades nativas de territórios colonizados, a presença de práticas restaurativas devia-se, principalmente, a uma concepção de justiça distinta da punição baseada essencialmente na privação de liberdade, bastante utilizada pelas sociedades modernas.

A própria estrutura das sociedades comunais, onde cada indivíduo exercia um papel significativo para o ordenamento social, favorecia as práticas restaurativas, no sentido de que o indivíduo que houvesse cometido alguma transgressão às leis da comunidade deveria ser julgado para permanecer exercendo sua atividade social, evitando-se, assim, a ruptura de seus vínculos comunitários. Jaccoud (2005) assinala ainda que o ressurgimento dos modelos restaurativos na sociedade atual deve-se, em parte, às reivindicações de povos nativos remanescentes que exigem da justiça estatal respeito aos seus processos de resolução de conflitos (Marshall, Boyack, Bowen, 2005; Jaccoud, 2005).

Não admira que os modelos atuais de justiça restaurativa estejam diretamente ligados e façam referência às comunidades pré-estatais. Destas, as tribos Maori, da Nova Zelândia, são o maior exemplo na história da justiça restaurativa de como um modelo tribal ganhou visibilidade e legitimidade suficientes, a ponto de ser incorporado pela justiça tradicional neozelandesa. O modelo de justiça restaurativa advindo das tribos Maori foi o resultado da insatisfação dos membros dessa tribo quanto ao enquadramento de seus jovens e crianças no sistema tradicional repressor.

Com efeito, a Nova Zelândia é um dos países que há mais tempo desenvolve projetos de justiça restaurativa. O trabalho com crianças e jovens descrito acima foi o primeiro a ser incorporado. Pesquisas foram realizadas entre 1990 e 2004, com largas amostras 2 reveladoras de aspectos positivos e negativos dos projetos de justiça restaurativa naquele país. Não obstante os resultados negativos (como os casos em que não se conseguia firmar um acordo), o que é preciso destacar é que se tratava de uma nova instância para resolução de conflitos, envolvendo crianças e jovens - uma forma alternativa ao modelo punitivo tradicional de lidar com os conflitos, o qual é caracterizado por Maxwell da seguinte forma:

em especial, o processo da reunião de grupo familiar foi reconhecido como um mecanismo que poderia ser usado dentro do sistema de justiça mais amplo para prover soluções de justiça restaurativa a infrações dentro de um sistema tradicional, onde as sanções do tribunal também poderiam estar disponíveis quando necessário (2005 p.280).

Devido ao crescimento dos grupos de trabalho com justiça restaurativa na Nova Zelândia, chegou-se a pensar na criação de uma agência que regulasse e regulamentasse os trabalhos com esse tipo de justiça. Porém, teóricos como John Braithwaite (2001) referem-se a pouca maturidade dos projetos, como um todo, como fator impeditivo para a criação de um Instituto de regulação desses trabalhos. No entanto, o que foi estabelecido como critério de regulação das práticas restaurativas foi um documento intitulado, “Draft Principles of Best Practice for Restorative Justice Processes in Criminal Courts” (Esboço dos Princípios da Melhor Prática para Processos de Justiça Restaurativa nos Tribunais Criminais), de maio de 2003. A partir desse documento – criticado, aprimorado e reformulado – datado de junho de 2003, a Rede de Justiça Restaurativa da Nova Zelândia adotou um conjunto de princípios, tais como: participação dos mais afetados pela transgressão na condição de protagonistas; respeito, a partir da concepção de que todos os seres humanos têm igual valor, independente de qualquer condição (raça, gênero, etnia) e de suas atitudes danosas; e empoderamento, no sentido de que, no foro restaurativo, os próprios envolvidos no conflito têm a possibilidade de tentar resolvê-lo, sem a representação estatal (apesar de que, caso o conflito não se resolva, caberia ao Estado intervir) 3.

Entre outros países que adotam a justiça restaurativa, observa-se um caso importante, de experiência bem sucedida, na Colômbia – um país latino-americano, com características semelhantes às do Brasil – a qual vem mostrando que o emprego de meios alternativos de se fazer justiça é também viável em países com altos índices de desigualdade social. Na Colômbia, a justiça restaurativa alcançou tamanha legitimidade que foi inscrita na própria Constituição e no Código de Processo Penal desse país 4. Ademais, a implementação da justiça restaurativa na Colômbia obteve resultados muito positivos para a sociedade e para o sistema jurídico como um todo5. A capital colombiana, Bogotá, foi brindada com um índice de redução de 30% nas taxas de homicídios após a implementação da justiça restaurativa.

A justiça restaurativa e sua chegada no Brasil

Conforme dito antes, a proposta alternativa de resolução de conflitos, denominada justiça restaurativa, vem ganhando amplitude no território neozelandês. Um dos principais desdobramentos desse avanço foi o seu alcance em outros países também interessados em novas possibilidades de promoção da justiça em seu âmbito.

Dentre os diversos países que também vêm adotando a justiça restaurativa, o Brasil se destaca, a partir de junho de 2005, quando a Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça – MJ, em parceira com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, decidiram implementar projetos de justiça restaurativa em três estados da Federação – São Paulo, em São Caetano do Sul; Rio Grande do Sul, em Porto Alegre; e Distrito Federal, na cidade do Núcleo Bandeirante.

Cada projeto atua em uma frente diferente, o que mostra, a exemplo do caso neozelandês, que são muitas as áreas em que projetos de justiça restaurativa são aplicáveis.

O projeto situado em São Caetano do Sul trabalha com crianças e adolescentes nas escolas. O de Porto Alegre lida também com crianças e adolescentes, mas que estão cumprindo medidas sócio-educativas. Já no Distrito Federal, o trabalho envolve a comunidade em geral e é vinculado ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal – TJDFT, sendo que os casos atendidos pelo projeto são encaminhados por um juiz de direito.
Trata-se de projetos-piloto, representando as primeiras tentativas de inserção da proposta de justiça restaurativa no Brasil, que visam verificar a aplicabilidade e adequação desse modelo alternativo, bem como fazer testes e ajustes desse tipo de justiça à realidade nacional. Apesar de abordarem públicos diferentes, os projetos partem de um ponto-comum, que é a busca de uma nova forma de se fazer justiça no país, dada a ineficácia das medidas tradicionais de justiça, que atinge a ambos os públicos. E é justamente essa busca que vem alimentando a idéia de justiça restaurativa no contexto brasileiro e expandindo-a e consolidando-a.

Justiça tradicional x Justiça restaurativa

Além do processo histórico apresentado anteriormente, outro determinante fundamental para uma adequada compreensão do advento da justiça restaurativa e de suas características consiste em analisar a razão que a sustenta. Nesse caso, se a justiça restaurativa se propõe a dar resposta à ineficácia da justiça tradicional em solucionar conflitos, deve-se analisar sua existência a partir das diferenças entre uma e outra. Entre os aspectos estruturais que as diferenciam, o que deve ser de imediato observado diz respeito ao papel que é atribuído aos sujeitos.

Na justiça tradicional, os indivíduos situam-se numa arena como adversários. Já a proposta de justiça restaurativa dá um novo significado ao lócus em que se situam a vítima e o ofensor, como de cooperação para se chegar a um objetivo razoável para ambas as partes. Em outras palavras, na justiça tradicional (retributiva), o indivíduo que se sente lesado por outro entra com uma queixa e assume novamente o papel de vítima. Esta deverá ser a sua condição do início ao fim do processo para que alcance seu objetivo: culpar o ofensor. Nesse caso, percebe-se, no entanto, que há uma atuação contraditória por parte da vítima, a qual assume o objetivo de lesar, por sua vez, aquele que lhe havia lesado, assumindo, dessa forma, papel de ofensor; já aquele que havia cometido o delito, passa a ser vítima de seu próprio delito, ou ainda, vítima das ofensivas de seu adversário no processo.

Por outro lado, no processamento da justiça restaurativa, os indivíduos implicados num conflito deixam de ser diferenciados pela designação de vítima e de criminoso, para serem considerados “partes” envolvidas. Dessa feita, sob a perspectiva restaurativa, o conflito passa também a ser um dano às relações sociais em que as partes estão inseridas, além de gerar impactos negativos a toda a comunidade 6, sendo, portanto, do interessante de todos, especialmente das partes, que ele seja resolvido, e não reproduzido. Assim, o ofensor, em vez de se eximir da culpa que possui, é chamado à responsabilização e à exposição das razões e justificativas que o levaram a cometer tal ato, pois existe ali a possibilidade de restaurar os danos causados em conseqüência desse mesmo ato 7. Disso decorre que, num encontro restaurativo, diferentemente da “verdade real” dos fatos, imposta pelo veredicto do tribunal, o que se pretende construir é uma “verdade consensual”, permeada pelas razões de ambas as partes, não apenas para uma delas, mas para ambas. 8

Além da diferença entre o espaço e as atribuições da vítima e do ofensor, outra distinção estrutural da justiça restaurativa diz respeito aos encaminhamentos necessários para responsabilizar o ofensor. No modelo tradicional, aquele que foi identificado como responsável pelo conflito passa a ser a personificação do próprio conflito, ou o conflito em si, e, por isso, deve ser isolado do convívio social para que este continue a se manter saudável. Em contraposição, no modelo restaurativo, o conflito pertence tanto à vítima, quanto ao ofensor, ou ainda a toda a comunidade 9, de modo que todos passam a ter responsabilidade de encontrar um caminho para sua solução. Contudo, esse processo deve, necessariamente, passar pela responsabilização do ofensor, a partir do momento em que a vítima lhe traz o conhecimento das conseqüências e impactos que suas atitudes causaram.

Além disso, a responsabilidade assumida pelo ofensor não implica o seu confinamento. Pelo contrário, o modelo restaurativo de justiça procura lidar com os prejuízos resultantes de um conflito antes mesmo que ele se “judicialize”, antecipando-se mais até do que as chamadas penas alternativas. No entanto, para que a solução surgida de um acordo restaurativo seja validada, ela necessita ser coerentemente fundamentada nos preceitos constitucionais 10.

Na justiça tradicional, ao contrário, o delito é a porta para um reviver do conflito, mediante uma investigação que tem por fim unicamente incriminar o responsável pelo delito, pois é essa a resposta primordial perseguida pelo Estado. Já no modelo restaurativo, o crime é o ponto de partida para a busca de um diálogo construtivo entre dois ou mais membros de uma sociedade, ainda que esses não se conhecessem antes, contanto que estejam compartilhando do objetivo de resolver tal conflito 11 e reparar os danos que tenham ocorrido.

Justiça restaurativa implica, portanto, partir do espaço tradicionalmente usado para a estigmatização, vingança e punição e ressignificá-lo como o espaço da reflexão, de reparação e de arrependimento canalizado para a reconstrução do que foi danificado com o conflito. Essa nova proposta de acesso à justiça deve romper com a cultura do individualismo, do adversarial. Deve reconhecer a potencialidade das soluções construídas coletivamente e a força da cooperação para o objetivo comum de resolver o conflito, que atinge toda a sociedade; e isso passa pela necessidade de repensar os papéis de vítima e de ofensor no âmbito da discussão para a solução do conflito.

Repensar a importância da cooperação para promoção da justiça significa muito mais do que uma transformação das medidas adotadas para tal objetivo. Significa transformar as bases ideológicas, culturais e sociais da própria sociedade atual, em busca por um modelo de justiça que perceba a importância do outro, não apenas para alcançar objetivos individuais, mas para reconhecer que a alteridade do ser social, isto é, a abertura para o outro, se firma na existência desse outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se, portanto, que é necessário transformar as bases filosóficas da justiça e humanizar as relações reificadas que nela existem, para que se alcance uma outra concepção de justiça que conceba o crime como uma violação à comunidade como um todo. É indispensável, pois, que se reconheça a importância dos indivíduos em litígio como pessoas inseridas em diversos espaços da teia de relações sociais (Capra, 1997). E é necessário que se amplie a participação do outro para uma efetiva reparação de danos, tendo em vista que o conflito implica prejuízos para ambas partes.

Um entrave para a implementação efetiva da justiça restaurativa no Brasil, como meio de resolução de conflitos, emana justamente da maneira complexa pela qual se compreende o conflito e a justiça. Como salienta Rolim, a intenção de se “restaurar” as relações sociais deve ser entendida de forma complexa, não podendo confundi-la com a mera reposição do status quo ante (2004).
No entanto, tal comprometimento com a solução do conflito e a transformação das condições que o determinaram, significa um enorme enfrentamento das condições desiguais, presentes na estrutura social brasileira. Este entrave consiste na dificuldade de se conciliar justiça e acesso a direitos. Levar em consideração as profundas injustiças vivenciadas cotidianamente por muitos dos indivíduos implicados num conflito, significa demandar esforços para reduzi-las ou eliminá-las – e esse é, portanto, um desafio secular enfrentado no Brasil.

As políticas sociais constituem meios de inclusão pela redistribuição de renda, acesso à satisfação de necessidades humanas básicas, inserção no mercado de trabalho e sistema educacional, entre outros, e podem ser alternativa eficaz para a solução do entrave indicado acima. Tidas como ferramentas de redução de desigualdades, não obstante a desigualdade estrutural inerente ao capitalismo, pela via da dignidade 12 e do direito, as políticas sociais historicamente são objeto de pesquisas, monitoramento e avaliação por parte de profissionais do Serviço Social. É, portanto, válido destacar a importância da articulação de tais políticas, na construção de uma rede de inclusão social, para o enfrentamento de tais desigualdades e ampliar o alcance das práticas restaurativas na busca da transformação de realidades social e judicialmente injustas.

Por essa perspectiva, a proposta de justiça restaurativa é muito mais do que um mero mecanismo de resolução de conflitos a ela encaminhados. Abarca um esforço maior pela transformação da concepção retributiva arraigada na sociedade, além da persecução de um objetivo bastante recorrente no discurso restaurativista, que é a promoção de uma cultura de paz por meio da cooperação e da solidariedade.
Ora, num país como Brasil, onde as condições de vida da maioria são extremamente penosas, o discurso da solidariedade pode levar a uma conhecida armadilha neoliberal, que é a de desresponsabilizar o Estado, repassando suas obrigações à sociedade civil, apelando para a figura esquizofrênica do chamado terceiro setor 13. A cooperação e solidariedade entre pessoas para humanizar a justiça não deve ser confundida com o princípio do voluntarismo 14 neoliberal. Esse ponto é delicado e, conforme assinalou Scuro, num Fórum Nacional de discussão sobre justiça restaurativa, o trabalho executado pelos profissionais da mediação de conflitos não deve ser voluntário. A capacitação oferecida a esses profissionais deve ser ampla e a dedicação ao trabalho deve ser contínua, e não oscilante, como acontece com o vínculo informal e filantrópico do voluntarismo.

O alcance que a concepção de justiça restaurativa vem ganhando, sinaliza, além dos aspectos mais específicos de resolução de conflitos, uma nova orientação, no que toca às relações humanas no processo de promoção de justiça. Representa uma parcela crescente de cidadãos (de profissionais do âmbito jurídico e de diversas outras áreas, de movimentos sociais laicos e religiosos, entre outros), que descrê dos resultados obtidos no modelo de justiça atual e manifesta inconformidade com os crescentes prejuízos que este modelo vem causando para a sociedade em seu conjunto.
Todavia, a bandeira pela justiça restaurativa como resposta ao inaceitável, deve abarcar não apenas um novo modelo, cuja novidade seja essencialmente funcional. Para alcançar as mudanças pautadas pela justiça restaurativa esse novo modelo deve ser portador de uma clara perspectiva de transformação societária. Deve imbuir-se das demais bandeiras levantadas por diversas frentes de luta em prol de uma sociedade não apenas justa no plano jurídico, mas também socialmente igualitária.

A justiça restaurativa tem se apresentado como espaço privilegiado para a interface entre os diversos campos do conhecimento e entre as diversas organizações da sociedade civil, a fim de se rediscutir os meios de (re)inserção, (re)educação e emancipação dos indivíduos em conflito com a lei, com a sociedade, ou com o próximo. Sendo assim, nota-se que, no Brasil, esse modelo de justiça deixa de ser apenas restaurativo para dever ser também instaurativo, na medida em que uma situação razoável de convivência e um alicerce mínimo para a superação de conflitos criminais e infracionais nem sequer existiam antes da manifestação de tais conflitos.

A inserção da justiça restaurativa num país fortemente influenciado pelo ideário neoliberal, como é o caso do Brasil, deve também levar em consideração o meio em que se procura implementá-la, tendo a cautela para não apenas importar um conjunto de idéias, mas de criteriosamente adaptá-las à realidade nacional.
É importante que se tenha sempre uma postura crítica e atenta para que a justiça restaurativa não desemboque na chamada “terceirização” do conflito, nem caia na armadilha neoliberal que vê nessa modalidade de justiça um espaço importante para privatizar os conflitos, desonerar o Estado e, quiçá, entregá-los ao mercado.

É importante ainda ressalvar, levando em conta aspectos mais jurídicos, que a justiça restaurativa não tem a pretensão de abarcar todos os tipos de conflito. Deve, portanto, estar ciente de suas limitações e saber reconhecer quando um determinado caso não está se adequando a ela, com vista a não incorrer no mesmo erro da justiça tradicional de submeter todas as realidades a um único modo de resolução de contendas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Ao longo do texto essa questão dos valores que permeiam e fundamentam a justiça restaurativa será melhor abordada.

2 Para informações detalhadas sobre as pesquisas, cf. Maxwell, 2005 p.281 – 289.

3 Para uma explanação mais ampla dos demais valores expostos nesse documento, ver Marshall, Boyack e Bowen (2005).

4 Cf. Gomes Pinto em http://www.idcb.org.br/documentos/ último acesso em 10/05/2007.

5 Ver Scuro Neto, 2004.

6 Falar em comunidade atualmente é também um obstáculo para a promoção da justiça. Uma breve discussão sobre o conceito de comunidade aplicada à justiça restaurativa pode ser encontrada em Ortegal (2007).

7 Uma crônica muito interessante que aborda relações adversariais e cooperativistas, numa outra esfera das relações pessoais, escrita por Rubem Alves encontra-se disponível em http://www.rubemalves.com.br/tenisfrescobol.htm - último acesso em 10/05/2007.

8 Paz, Silvana e Silvina apud Sócrates (2006). Disponível em www.restorativejustice.org – último acesso em 10/05/2007.

9 É em razão dessa responsabilidade coletiva pelo conflito que se recomenda que a figura do facilitador seja um membro da comunidade e que, de acordo com o conflito, representantes da comunidade participem dos encontros restaurativos.

10 Para que seja válido, o modelo restaurativo precisa ser juridicamente coerente, principalmente no que tange à validade dos acordos restaurativos. Ver mais sobre a compatibilidade da justiça restaurativa, em Sócrates (2006).

11 Um dos princípios da justiça restaurativa a voluntariedade das partes. Cf Paz, Silvina (2005).

12 Cf: Pereira, Potyara (1996).

13 É chamado esquizofrênica a concepção de terceiro setor, tendo em vista as críticas contundentes de Montaño, que demonstram como a sociedade civil, sob o nome de terceiro setor, ora exerce os deveres do Estado (1° setor), da sociedade civil, sendo atribuído o termo esquizofrênico por fragmentação da identidade vivida pela sociedade civil no contexto neoliberal. Cf: Montaño, 2002.

14 O termo voluntarismo é proposital, e se distingue do voluntariado autêntico, sendo o voluntarismo as práticas estratégicas para desonerar o Estado, a cargo do chamado terceiro setor. Cf: Montaño, 2002.



* Datos sobre el autor:
* Leonardo Ortegal
Assistente social do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás – TJGO, mestrando em Política Social pela Universidade de Brasília - UnB.

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