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Edición N° 29 - otoño 2003

“EUA EXECUTAM ESQUIZOFRENICO, A PESAR DE APELOS”

Prisão Perpétua no Brasil (?): A situação do louco infrator

Por:
Andréa dos Santos Silva Medeiros
*
(Datos sobre la autora)
Descritores: Saúde Mental; Pessoas Portadoras de Deficiência Mental; Psiquiatria Legal; Medidas de Segurança;


O título diz respeito a uma matéria que teve grande repercussão e foi amplamente divulgada pela imprensa do Brasil e do mundo. Segundo informações dos jornais, ignorando protestos no Exterior e dentro do país, apelo da Anistia Internacional e da União Européia, o estado norte-americano de Ohio executou, com uma injeção letal, um homem descrito por seus advogados como esquizofrênico e sem condições mentais de entender o que estava acontecendo com ele. Jay Scott, 48, foi condenado à morte por assassinar um idoso, proprietário de uma loja, em Cleveland em 1983. Conforme o jornal, ele havia recorrido a todas as apelações possíveis na Suprema Corte dos EUA e o governador de Ohio, Bob Taft, recusou-se a evitar sua execução. (Jornal do Brasil, 16/06/2001).

Nos Estados Unidos os códigos penais variam de estado para estado, alguns inclusive contemplam a prisão perpétua e a pena de morte. No Brasil, que não contempla em sua legislação essas penas, o tema ainda gera muita polêmica.

Partido da premissa “que, um doente mental não pode ser considerado legalmente como criminoso, mas, por outro lado, não se pode negar que foi ele um infrator da lei, sendo até considerado como legalmente perigoso 1 ”, se pretende discutir de que forma a justiça brasileira trataria o crime em questão ? Qual o destino dos “loucos criminosos” e os “criminosos loucos”? Como se deve tratar de forma humana essas pessoas e ao mesmo tempo reabilitá-las para o convívio social? (COHEN, 1996. p.73)

Assim, considerando a relação entre o poder judiciário e a prática psiquiátrica, como parte do dispositivo de controle-dominação da loucura, busca-se nesse ensaio identificar as implicações em casos de envolvimento de doentes mentais que infringiram a lei ainda relatar, através da experiência enquanto estagiária em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, os limites e as possibilidades do “Serviço Social” no sentido de evitar a prisão perpétua a que muitos estão submetidos.

Nessa perspectiva de iniciamos o trabalho com um resgate histórico de dois mecanismos de controle social - a prisão e hospital – os quais apesar de guardarem diferenças apresentam similitudes no sentido de que os saberes e práticas concebidos no segundo são regidos, se podemos assim dizer, com a mesma lógica que move os mecanismos de dominação e imposição da lei e da ordem 2 .

Adiante o objetivo é discorrer sobre a emergência da fusão dessas instituições em um determinado momento histórico atendendo assim ao clamor público vigente na época. Dito de outra forma, o produto daí advindo ou seja, o Manicômio de Judiciário “um campo que consegue articular, de um lado duas das realidades mais deprimentes da sociedades modernas – o asilo de alienados e a prisão – e, do outro, dois dos fantasmas mais trágicos que nos “perseguem” a todos – o criminoso e o louco”. (CARRARA, 1998. p. 26)

E finalmente abordar como se exerce efetivamente o controle daqueles que são portadores de transtorno mental que caíram nas “malhas da lei” assim como, discutir os conceitos regem esse controle.

A PRISÃO

“Vi meus personagens de carne e osso. Convivi com condenados, assassinos e marginais; escutei suas histórias e observei o ponto de vista deles. Sentei no banco dos réus, pilotei uma sela e senti o cheiro insuportável da prisão, imaginando o quanto fácil é deixar de ser racional para ser simplesmente um animal. A aventura diária de quem estava no inferno. (...) O crime me fascina no sentido de que se reflete a obsessão dos miseráveis, dos caídos e dos delinqüentes. Escrever para mim é sangrar”.
Hosmany Ramos


É público e notório que a vida em sociedade requer de seus membros, normas de conduta bem determinadas, ou seja, padrões de comportamentos, regras mínimas para uma convivência que se queira minimamente harmoniosa. Leis e normas, são apresentadas como as únicas racionais, civilizadas, adequadas à situação, como se fossem naturais, universais.

A normalização social necessária a uma convivência harmoniosa pode ser transmitida às pessoas através dos aparelhos institucionais, repressivos e ideológicos do Estado, na concepção althusseriana do termo: o hospital, o cárcere, a igreja, a família, a escola, entre outras.

A prisão entre outras instituições disciplinares, mostra com mais clareza, o “poder simbólico” de representar os meios pelos quais ocorre a normalização social. Isto é existe um esquadrinhamento do espaço, cada pessoa ocupa um determinado lugar, deve ficar naquele espaço e não em outro, etc.

O tempo no sistema prisional é criteriosamente distribuído e regulado segundo certos horários e não há possibilidade de outros. As atitudes também são observadas minuciosamente, vigiadas, registradas. A disciplina se encontra presente nos mínimos detalhes da organização da vida carcerária sendo imposta aos “presos” e “carcerários”.

O poder de dominação não é empregado somente em reprimir mas também, utilizado para produzir, para criar novos comportamentos sociais através de esquemas de vigilância, punições e recompensas. (CAMARGO, 1990. p. 134)

Camargo observa que a prisão passou a ser pensada no final do século XVIII e início do século seguinte nos países já industrializados, como a pena das sociedades civilizadas. Anteriormente ocupara uma posição secundária na hierarquia do sistema de penas, tendo como objetivo assegurar a presença do suspeito à disposição de seus juizes, ou do condenado à espera da execução da sua sentença.

A mesma autora identifica que a alteração do estatuto jurídico da prisão está diretamente relacionada ao liberalismo triunfante da revolução francesa pois, numa sociedade em que a liberdade se constitui um bem que pertence a todos da mesma forma, e ao qual cada um está vinculado a um sentimento “universal e constante”, podemos concluir que sua privação tem o mesmo preço para todos; melhor que a multa, ela é o castigo “igualitário”.

Assim a prisão é inteiramente adequada às sociedades industriais, pois ela se torna uma “forma-salário” de reparação: retirando o tempo do condenado, esta instituição mostra que a infração cometida por este lesou, não apenas a vítima, como também a sociedade inteira. Assim, é possível entender que a prisão permite quantificar, com exatidão, a pena segundo a variável do tempo, contabilizando os castigos em dias, meses, anos seguindo equivalências quantitativas delito-duração. Daí no senso comum se dizer costumeiramente que a pessoa está presa para “pagar a sua dívida”. (CAMARGO, 1990. p.133)

A industrialização trouxe intrínseca a necessidade de grande quantidade de mão-de-obra, e a prisão surge como prerrogativa para transformar pessoas ociosas em população trabalhadora: projetadas enquanto fábricas de disciplina, a estrutura carcerária, além da punição possui dentro outros objetivos, transformar os corpos dos indivíduos - utilizando-se de meios de coerção e processos de treinamento - em corpos dóceis, ou seja, até se traduzirem em novos comportamentos produtivos, socialmente úteis. (CAMARGO, 1990. p.134)

A prisão se constitui em um aparelho modificador de indivíduos -, “despojamento do eudos que nela ingressam, seguido de outro processo, o de reorganização da personalidade na base de novos padrões - como a escola, os quartéis, entre outras.

Ao ingressar na prisão o indivíduo perde sua auto-imagem, como também uma série de direitos fundamentais, como votar, responsabilizar-se pelos filhos, manter habitualmente relações heterossexuais, ou seja, além cidadania, perde a liberdade, a identidade e a privacidade 3 .

A prisão é uma instituição que pela própria natureza traz intrínseca uma série de contradições já que, se propõe a ações bastante conflituosas que remete a um grande drama ainda não respondido: “recuperar ou punir?”.

O tema das prisões desde o seu surgimento vem sendo debatido por diversos autores. Além dos estudos clássicos como de Michel Foucault que retrata a natureza dessa instituição, ou ainda em outro campo teórico Goffman que fala sobre o estigma da prisão, temos ainda publicações recentes sobre essa área, merece destaque os recentes trabalhos de Loïc Wacquant 4 .

Este sociólogo francês faz uma articulação de toda a questão das prisões com o desenvolvimento econômico das sociedades. O autor introduz uma nova discussão argumentando que, atualmente as prisões são projetadas como fábrica de exclusão, e a população que habita as prisões é composta por pessoas excluídas socialmente.

A exclusão social noção de origem francesa vem sendo apreendida por Escorel (1998. p.19) “como um processo que envolve trajetórias de vulnerabilidade, fragilidade ou precariedade e até ruptura dos vínculos em cinco dimensões da existência humana em sociedade: o mundo do sócio-familiar, do trabalho, das representações culturais, da cidadania e da vida”.

Contudo, o processo de exclusão não é fabricado pela prisão, o indivíduo quando lá chega já traz toda uma carga, que a instituição faz aprofundar uma prova disso é o fato de uma pessoa ser possuidora de curso superior conceder a esta direito a “prisão especial” 5 .

De acordo com Freixo (2001. p.11) o “nosso sistema prisional é cuidadosamente seletivo” ou seja, o tipo de crime cometido pelo pobre é que gera privação de liberdade. Assim podemos concluir que existe um conjunto de situações onde algumas pessoas se encontram em déficit no jogo social, produzindo uma visibilidade econômica que de certa forma justifica nesses segmentos uma “tendência” ao crime necessitando assim, serem constantemente vigiados.

Nas palavras de Zaffaroni 6 (1991. p.53)

“É verdade que no mundo temos sistemas penais seletivos, mais violentos, mais reprodutores de violência e sistemas penais menos seletivos, menos violentos, menos reprodutores de violência. Isso é verdade, sem dúvida. Como regra geral, poderíamos dizer que o sistema penal é mais seletivo, mais violento, mais reprodutor de violência quanto mais estratificada seja a sociedade, quanto maior seja a polarização da riqueza numa sociedade, quanto maior seja a injustiça social numa sociedade. E que é menos seletivo, menos violento, menos reprodutor de violência quanto menor seja o grau de injustiça social de uma sociedade”.


Ao observarmos o meio penitenciário percebemos que lá existem estruturas sociais, como na sociedade, a cadeia reproduz essa estratificação: presos que passam a ser poderosos, os ricos, os de prestígio, os prestadores de serviços sexuais, os alcagüetes, os traficantes, entre outros. (AUGUSTINIS; COHEN, 2002)

Abusos de direitos humanos são cometidos diariamente nos estabelecimentos prisionais contra milhares de pessoas: a escassez de recursos, as péssimas condições em que se encontram as unidades prisionais, superlotação, falta de pessoal especializado, etc.

Mesmo não tendo dados concretos que justifiquem a afirmação fica evidente que durante muito tempo o Estado não se preocupou em implementar políticas públicas capazes de proporcionar melhores condições de vida para os detentos, sendo assim, a idéia de abuso de presos, e, por isso, criminosos, não merece a atenção da opinião pública citados pela mídia apenas quando explodem rebeliões.

Segundo o relatório do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) com base nos dados 7 levantados em março de 2002 revela que nos 903 estabelecimentos penais existentes no Brasil a estimativa 8 do número de presos no país soma 235.460. Desse total, 155.050 condenados e 80.034 provisórios. Dos estabelecimentos penais com existentes no país contam com um número de 170.474 vagas efetivas. Dessa forma, o déficit das vagas se dá na ordem de 64.986 9 .

Em geral os presidiários são vistos com menosprezo pela sociedade que muitas vezes, sob influência dos meios de comunicação, acredita que o desrespeito aos direitos fundamentais do preso representa um castigo adequado e a violência a que são submetidos é tolerada, justificada e mesmo aplaudida.

De acordo com Caldeira
“além de a população não ver com maus olhos o uso da força contra os “bandidos”, os estereótipos disponíveis na sociedade brasileira, sobre os criminosos consideram-nos no limite não só da sociedade, como também da humanidade. E, na verdade, no processo de contestação aos direitos humanos parece que esses estereótipos foram se tornando mais radicais. A imagem dos criminosos foi mais do que enfatizada. Eles foram pintados em cores fortes do preconceito, da discriminação social e do desvio” ( CALDEIRA, 1991. p.169)


O sistema penitenciário funciona como um sistema repressor de indivíduos que cometeram algum ato ilícito, e tem como finalidade puni-los, tratá-los para só assim reinserí-los ao convívio social.

Contudo, Ferracuti chama a atenção

“que é impossível "curar" - modificar valores, pulsões, estereótipos, aspirações - em ambiente de coação, restrito, no âmbito da mais absoluta das "instituições totais 10 ", tratando-se de um "paciente involuntário", com meios inadequados, com pessoal só parcialmente qualificado e inseguro do seu próprio status e de sua função, sem que esteja claro o que significa "cura" e qual seria o "produto final" pretendido para que o indivíduo possa sair dessa cadeia - que já funciona em críticas condições de superpopulação e na qual se constata variabilidade da população-cliente, de suas normas e indefinição da finalidade do sistema”. (FERRACUTI apud AUGUSTINIS; COHEN, 2002)

Augustinis & Cohen observam que a instituição prisional, embora inserida no quadro legal e de justiça, torna-se Kafkiana 11 ao deixar de oferecer uma efetiva reabilitação sóciojurídica ao seu usuário pois, freqüentemente deixa de considerar os direitos das pessoas que são tratadas de forma desumana, não sendo sequer respeitadas as regras mínimas propostas pela Organização das Nações Unidas para o tratamento dos reclusos 12 .

Contudo, a privação da liberdade não ameaça a todos do mesmo modo, na mesma proporção, nem com a mesma força. Para alguns ela é somente ameaça. E, para outros, ela é certeza que persegue.

Wacquant em seu estudo sobre o processo da privatização das prisões e da criminalização da pobreza nos EUA, constata que punir os pobres é uma nova forma de gestão da miséria, de guardar os inúteis, os que não têm funcionalidade na economia capitalista. Analisa que há uma transição do Estado-Providência para um Estado que criminaliza a miséria. (WACQUANT, 2001)

O autor chama atenção e aponta a existência de uma tendência que o Brasil parece estar querendo seguir, já que, a esmagadora maioria dos presos brasileiros faz parte da camada pobre, trabalhadora e secularmente oprimida e marginalizada que, constitui 80% da população brasileira.

Ainda com relação a essa tendência, o autor denuncia a dominância de uma política de mercado onde o crime é não ser consumidor: no Brasil, como no resto do mundo a “massa carcerária” é constituída basicamente por uma população de jovens, pobres, com baixo nível de escolaridade.

Pesquisas recentes apontam que mais da metade dos presos tem menos de 30 anos, 95% são pobres, 95% do sexo masculino, e dois terços não concluíram o primeiro grau (cerca de 12% são analfabetos) 13 .

Camargo chama atenção que as instituições prisionais
“não estão isoladas, evidentemente, mas bem articuladas com leis, medidas administrativas, enunciados científicos, princípios filosóficos, morais, etc. formando mecanismos, dispositivos disciplinares que garantem a ordem desse tipo de sociedade. O grande objetivo do conjunto de dispositivos disciplinares não é manter as estruturas sociais pela força – embora não a exclua – mas sim pelo cumprimento de normas de conduta bem determinadas”. (CAMARGO, 1990. p.134)

Contudo Camargo afirma que a prisão enquanto projeto de transformação de indivíduos pode ser considerada um fracasso total. Na França documentos datados de 1820 constatam que o sistema prisional “longe de transformar os criminosos em gente honesta serve apenas para afundá-los ainda mais na criminalidade”. (CAMARGO, 1990. p. 135)

Ou seja, a prisão tem provocado o efeito contrário ao desejado, prisões representam atualmente uma “pena de morte social” já que não seguem mais a lógica punitiva dos séculos XVIII e XIX assim, se constituindo efetivamente em depósitos de exclusão. (FREIXO, 2001)

A “ressocialização” está longe de ser o objetivo e a finalidade da pena de prisão 14 . Suas funções tem se pautado em objetivos antagônicos: punir e exemplariar. Ou seja, perdeu-se a muito a bússola da ressocialização não sendo mais possível considera-la utopia, algo irrealizável e sim, algo absurdo, aquilo que jamais poderá ser feito porque está em oposição à lógica. (ZAFFARONI, 1990)

Para assegurar que o condenado não mais poderá causar danos a sociedade, coibindo eventuais fugas, e ao mesmo tempo garantir a sobrevivência da população presa 15 o sistema prisional conta com recursos humanos diferenciados: cabe aos agentes de segurança penitenciária a responsabilidade de zelar pela segurança e disciplina. Assim, “surge essa quase ficção de alguém, um adulto que custodia outro adulto” ou seja, “homens que custodiam outros homens”. (DAHMER, 1992)

Cabe ressaltar que tal tarefa em termos de passado histórico das punições não existia pois tínhamos a figura do carrasco que dava fim a vida do condenado. Hoje tal tarefa é desempenhada pelo agente penitenciário, sem que no Brasil disponha de uma escola de formação portanto, o conhecimento é transmitido de uma geração mais antiga de agentes para os novos ou seja, as práticas “profissionais” exercidas são fundamentadas inexoravelmente na ideologia e muito pouco norteada por um conhecimento sistematizado em um corpo teórico.

As prisões contam ainda com outro grupo de profissionais que tradicionalmente pouco se identificam com a segurança, são eles os técnicos de diferentes áreas entre eles, o assistente social. A estes profissionais dentro da custódia, não cabe a tarefa de zelar pela segurança, é de sua competência assegurar condições de vida compatíveis com a condição humana.

Contudo, tarefas específicas procedentes das leis assim como, das disciplinas teóricas que orientam a formação profissional dos técnicos, colocam atribuições extremamente contraditórias às condições de vida dos confinados.

Técnicos e agentes embora com funções institucionais diferenciadas desempenham um papel pedagógico. Convivendo no mesmo espaço institucional a confluência dessas divergentes, porém complementares, atividades profissionais se dá com maior ou menor grau de intensidade no dia-a-dia da instituição: nos conflitos de familiares dos presos, conflitos com companheiros, laudos para instruir benefícios, infrações disciplinares cometidas que demandam técnicos e agentes, confrontam opiniões. (DAHMER, 1992)

Apesar de todo esforço empreendido no sentido de reprimir a autonomia dos presos - que pode ser entendida como retaliação ao delito cometido - não podemos negar o fenômeno da “prisionalização”, ou seja, não podemos ignorar o surgimento de uma cultura própria dos “presídios 16 ”, uma estrutura autônoma, com funções diferenciadas e leis próprias.

Apesar de toda tentativa de poder na forma de controle, na prática, os indivíduos não perdem de fato sua autonomia e, o suposto reeducando, para sobreviver terá que se identificar com seus colegas de infortúnio.

Assim,
“considerando que um dos princípios filosóficos que sustentam o sistema prisional, o da defesa social, que é o de proteger a sociedade com relação ao indivíduo que cometeu um ato antijurídico, ainda seja válido. O que se questiona, porém é como na prática se deva realizar essa proteção social e como se deve tratar de forma humana essas pessoas a serem custodiadas e ao mesmo tempo reabilita-las ao convívio social”. (AUGUSTINIS; COHEN , 2002)

Devemos observar de forma realista e desarmados de pré-conceitos não somente a instituição carcerária, como também o hospital psiquiátrico, pois somente assim poderemos conhecer realmente como funcionam e, deste modo estabelecer estratégias e táticas de ação mais adequadas a essa realidade. Atualmente essas estratégias convergem na direção do multiprofissional como o que tem maiores possibilidades de melhores respostas, integrando saúde, a justiça, a visão social, religiosa, etc. (AUGUSTINIS; COHEN, 2002)

A partir desse resgate histórico pudemos além de caracterizar a instituição carcerária também, identificar as bases que sustentam sua manutenção apesar de evidenciada sua ineficiência.

Mais adiante observaremos que os alicerces que fundamentam a existência do asilo de alienados em determinado momento vão se assemelhar ao da prisão ou seja, remover, excluir, esconder, enclausurar aquilo que não se coadunava com uma determinada ordem social sem contudo esquecer que a estes será acrescido o caráter científico.

DE TENDÊNCIA À POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL

Resende 17 ao analisar as circunstâncias que determinaram a emergência da loucura enquanto problema social e, que traz atrelada a si, a imprescindível criação de instituições para controlá-la constata semelhanças no Brasil no final do século XIX e na Europa no século XVI guardando é claro as peculiaridade locais e defasagens no tempo.

Baseado em estudo clássicos da época o autor identifica que na sociedade imaginária denominada o “século do ouro”, na Europa, aos loucos era permitido viver sem submissão de métodos ou regra estes, eram guiados pela própria natureza e instinto.

A partir do nascimento da revolução burguesa a loucura que aparecia então diluída imprecisamente em todos os homens e, era de certa forma algo visto como natural, integrante da idiossincrasia dos sujeitos sofrerá alterações significativas como veremos mais adiante.

Esta com sua ideologia disfarçada de “científica, filosófica e religiosa” viria a lançar os pilares de um novo conceito de natureza humana suscitando um homem cujos atributos de virtude, e razão veio ampliar os limites da norma e, consequentemente, estreitar os horizontes permitidos à loucura.

“A definição de normal e do patológico não mais a partir de uma normatividade pessoal de cada um mas de um eixo de referência supra-individual, emanado das necessidades da economia, entendida aqui, no seu amplo sentido, como a práxis posta a serviço da produção e da reprodução da vida social, permanece até hoje na ordem do dia com uma das questões centrais da problemática da doença mental e das instituições que dela se ocuparam”. (RESENDE, 1990. p.20)

As atividades de desenvolvidas – o trabalho agrícola, o artesanato, e o trabalho artístico diferente da moderna atividade industrial não desqualificava os indivíduos para o trabalho antes porém, tinha como característica acomodar largas variações individuais e de “respeitar” o tempo e o ritmo psíquico de cada trabalhador 18

Assim, podemos afirmar que o fim do campesinato como classe e o declínio dos ofícios artesanais vieram marcar o destino do louco e elevar a loucura à categoria de problema social.

A partir do contexto descrito as cidades se regurgitaram de desocupados, mendigos e vagabundos e como reação foi empreendida em toda Europa uma repressão efetiva à mendicância, à vagabundagem e à ociosidade

“as medidas legislativas de repressão se complementaram pela criação de instituições, as casas de correção e de trabalho e os chamados hospitais gerais, que apesar de nome, não tinham qualquer função curativa, Destinavam-se a limpar cidade dos mendigos e anti-sociais em geral, a prover trabalho para os desocupados, punir de ociosidade e reeducar para a moralidade mediante instrução religiosa e moral.” (RESENDE, 1990. p. 24)

A loucura que durante tanto tempo permaneceu manifesta e loquaz será dissipada do cenário social. Os loucos serão enclausurados nos porões das Santas Casas e hospitais gerais partilhando com os demais indesejáveis sociais de diversas formas de punição e tortura. Os alienados na qual se identificava alguma especificidade, iriam sofrer tratamentos “médicos” que, levados a tal grau de brutalidade, não podiam ser desqualificados como formas de tortura.

“O final do século XVIII, com a idéias do Iluminismo, os princípios da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem nos Estados Unidos, viu crescer o movimento de denúncias contra as internações – leia-se “seqüestrações” – arbitrárias dos doentes mentais, seu confinamento em promiscuidade com toda espécie de marginalizados sociais e as torturas, disfarçadas ou não sob a forma e tratamentos médicos, de que eram vítimas 19 ”. (Resende, 1990. p. 25)

Não exclusivo, centrado em bases humanitárias o movimento que generalizou-se com o nome de tratamento moral pode ser entendido como uma pedagogia da ordem 20, uma normatização. De acordo com Amarante: “a grosso modo o tratamento moral é a utilização conveniente da disciplina, onde todos os aspectos que compõe a instituição asilar, concorrem para este fim”. (RESENDE, 1990. p. 26)

O doente mental necessita de normas, de uma rotina rígida que se dará em uma instituição que o trate, o asilo, pois o isolamento se torna imprescindível para eficácia do tratamento demarcando assim, o caráter de positividade da instituição médica. Surge também a necessidade um alguém capacitado, o médico ou seja, um campo específico.

Contudo na avaliação de alguns autores a modalidade em questão teria possibilitado senão a substituição da violência franca pela violência velada da ameaça e das privações. Assim seu fracasso será atribuído
“ a intensificação dos processos de darwinismo social e consequentemente deterioração da condições de vida das cidades, o afluxo maciço de imigrantes estrangeiros para os Estados Unidos na segunda metade do século XIX e a necessidade de remover da comunidade os elementos perturbadores da ordem e indesejáveis vieram inchar a população internada dos hospitais psiquiátricos e destruir o ambiente familiar que facilitava as trocas interpessoais, prováveis e responsáveis pelo êxito das pequenas instituições regidas pelos princípios do tratamento moral”. (RESENDE, 1990. p. 28)

De acordo com Resende no que se refere a realidade do Brasil constata-se que é parcialmente verdadeira a sustentação elaborada no início de que as particularidades que determinaram a incidência da loucura e da pessoa do louco à condição de problema social, foram semelhantes na Europa do século XVI e no Brasil dos primeiros anos do século XIX.

O autor identifica que em ambos os casos se repetem as mesmas justificativas nas proposições de criação de instituições para controle e tratamento dos alienados contudo, ressalva que as peculiaridades da vida econômica e social do Brasil colônia introduziram algumas dissimilaridades quanto às causas que levaram àquelas circunstâncias.(RESENDE, 1990. p. 29)

“O doente mental faz sua aparição na cena das cidades, igualmente em meio a um contexto de desordem e ameaça à paz social, mas, diferentemente do que se observou na Europa, em plena vigência da sociedade rural pré-capitalista, tradicionalmente pouco discriminativa para a diferença. Ou seja, aquelas condições classicamente invocadas como determinantes de um corte a partir do qual o insano torna-se “um problema” – a industrialização, a urbanização maciça e suas conseqüências – e que levaram muitos autores do século passado a admitir a doença mental como corolário inevitável do “progresso”, ainda não se tinha instalado no Brasil e já a circulação de doentes pelas cidades pedia providências das autoridades”. (RESENDE, 1990. p. 30)

Esta particularidade da situação brasileira será determinante na organização da ideologia da instituição psiquiátrica neste país ou seja, será exatamente a característica central da vida econômica da colônia – o trabalho baseado na atividade servil – que condicionará a situação social do período, moldará preconceitos e determinará transformações e conseqüências que terminarão por exigir providências e ações concretas.

Até o final do século XVIII as cidades brasileiras ainda permaneciam pouco povoadas, as industrias inexpressivas e os poucos trabalhos artesanais em grande parte destinados à subsistência das fazendas sendo desempenhadas por profissionais autônomos.

O conceito de trabalho na sociedade brasileira terá uma representação social negativa diretamente relacionada onipresença do escravo, tanto na atividade produtiva como na atividade doméstica, tanto na cidade como no campo, restringindo de tal forma o espaço reservado ao trabalho livre que poucas ocupações dignas restarão marcando a atividade laborativa em geral como atividade pejorativa e desabonadora.

Polarizada a vida social da época pode ser identificada de um lado por uma minoria de senhores e proprietários e, de outro uma multidão de escravos.

Resende ainda chama atenção para existência de subcategorias identificando assim uma massa incalculável de inadaptados, indivíduos sem trabalho definido ou totalmente sem trabalho. Percebe ainda uma terceira subcategoria, “a mais degradada incômoda e nociva é a dos desocupados permanentes, vagando de léu em léu à cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo crime”. (RESENDE, 1990. p. 34)

Socialmente ignorada por quase trezentos anos a loucura insurge de forma notória. Nas ruas a presença dos loucos será associada a de outros “marginais” dessa forma, será facilmente arrastada na rede comum da repressão à desordem, à mendicância, à ociosidade.

Nas Santas Casas de Misericórdia integrará sua população contudo, receberá tratamento diferenciado dos demais pois serão amontoados em seus porões, sem qualquer tipo de assistência médica.

Nas prisões caberá aos guardas e carcereiros a função de reprimir seus delírios: submetidos a contenção e espancamento, os loucos, serão literalmente condenados à morte por maus tratos físicos, desnutrição e doenças infecciosas.

“Desordem franca e ociosidade, perturbação da paz social e obstáculo ao crescimento econômico, estão aí as mesmas circunstâncias sociais, que alguns séculos antes, determinaram na Europa, o que Foucault qualificou de “o grande enclausuramento”; as diferenças residem apenas nas causas estruturais, aqui e lá, e que não foram poucas”. (RESENDE, 1990.p. 35)

A solução encontrada para o caos estabelecido seria impreterivelmente remover os elementos perturbadores com o objetivo de reeduca-los para a atividade laboral

“A loucura que se exteriorizava por comportamentos que, do ponto de vista das necessidades da economia e do convívio social assimilam o louco aos outros desadaptados, será arrastada na mesma trajetória destes últimos; numa primeira fase. Mas reconhecendo-se na loucura uma certa especificidade e nas suas manifestações algo de não necessariamente voluntário, ele será posteriormente triada, geralmente sob a pressão de denúncias e apelos humanitários”. (RESENDE, 1990. p. 36)

Contudo apesar do destino dos doentes mentais estar associado a de outro marginalizados sociais há, se podemos assim considerar, em desfavor aos doentes mentais o fato de que a necessidade de contenção será referendado pela ciência; o seqüestro uma indicação clínica e o trabalho ser uma exigência terapêutica.

Outro fator relevante se expressa na existência de número desproporcional de representantes das classes populares e de determinados grupos étnicos integrando a população dos hospícios justificadas, por taras hereditárias e tendências naturais desses grupos a determinados distúrbios mentais e à sociedade.

Resende concebe a expressão tendência como mais representativa da realidade brasileira no que se refere a história da assistência prestada ao doente mental se constituindo em um processo de exclusão, marcada pela inexistência de um política para o setor 21 que, segundo diversos autores se dará apenas em 1852, no Rio de Janeiro, com a inauguração pelo próprio imperador D. Pedro II, do hospício que recebeu seu nome.

“As primeiras instituições psiquiátricas no Brasil surgiram em meio a um contexto de ameaça à ordem e à paz social. em resposta aos reclamos gerais contra o livre trânsito de doidos pelas ruas das cidades; acrescentem-se aos apelos de caráter humanitário, das denúncias contra maus tratos que sofriam os insanos. A recém-criada Sociedade de Medicina engrossa os protestos, enfatizando a necessidade de dar-lhes tratamento adequado, segundo as teorias técnicas já em prática na Europa.
Três proposições contraditórias entre si; num extremo, um indicação prioritariamente social, a remoção e exclusão do elemento perturbador, visando a preservação dos bens e da segurança dos cidadãos, e no outro extremo, uma indicação clínica, a intenção de curá-los. De permeio a proposta de minorar-lhe o sofrimento, na tradição das instituições de caridade brasileiras” (RESENDE, 1990. p. 39)

Resende chama atenção que a premência e a preeminência da função saneadora dos primeiros hospícios dão às origens da assistência psiquiátrica brasileira um aspecto bastante peculiar, qual seja, o da precedência da criação de instituições destinadas especificamente a abrigar loucos sobre o nascimento da psiquiatria, enquanto um saber especializado, exclusivo sobre assuntos de saúde e doença mental.

Importante ressaltar que a nosologia psiquiátrica inexistia nas instituições assim como, a presença das religiosas dificultava qualquer possibilidade de intervenção do médico que não detinham sequer o poder administrativo cabendo tal função as irmãs de caridade.

De acordo com Resende em nos primeiros tempos o doente mental se constituiu um subproduto da cristalização das relações de trabalho do Estado escravista, de certa forma uma vítima ou conseqüência do não progresso (com as devidas ressalvas pela liberdade do uso desta expressão a-histórica e a-dialética), não se justificando portanto o investimento de qualquer caráter curativo. (RESENDE, 1990. p. 41)

Ou seja, o escravo que tinha um lugar social determinado com o processo de transição perde suas referências já que nenhum tipo de assistência lhe é assegurado, restando-lhe apenas a categoria de “marginalizado”.

“A quebra, daquela ordem veio trazer problemas novos – sobretudo o agravamento da questão da marginalidade – pedindo não só a intensificação dos processos de exclusão, mas uma proposta de recuperação de material excluído, e um corpo de conhecimentos que justificasse e legitimasse ambos os processos. Em contraste com o período anterior, no qual o binômio ordem-desordem era o equivalente social da equação saúde-doença e a contribuição para a restauração da ordem podia ser cumprida pela psiquiatria empírica, no emergente capitalismo comercial e industrial brasileiro somava-se àquele problema a ameaça à sobrevivência e à reprodução da força de trabalho e, em última análise, ao próprio processo de reprodução do capitalismo”. (RESENDE, 1990. p. 42)

Resende identifica que, a grosso modo, o período imediatamente posterior à Proclamação da República pode ser classificado como um divisor de águas entre psiquiatria empírica do vice- reinado e a psiquiatria científica, a laicização do asilo, a ascensão dos representantes da classe médica na administração das instituições e ao papel de porta-vozes legítimos do Estado, que tomam para a si a atribuição do cuidado ao doente mental, em questões de saúde e doença mental, tal como a gravidade da situação exigia. (RESENDE, 1990. p. 43)

Outra providência no período é a entusiástica adesão à política de construção de colônias agrícolas. Essa complementar a rede de ofertas de serviços hospitalares tradicionais tinha como objetivo dar conta dos excedentes produzidos nas instituições “urbanas”. Situadas em lugares de difícil acesso na verdade, sua única função social, era excluir o doente de seu convívio social, e, “escondê-lo” dos olhos da sociedade. (RESENDE, 1990. p. 52)

Resende constata que ao fim da década de 50 a situação brasileira no trato ao doente mental era caótica caracterizada pela superlotação das instituições, deficiência de pessoal maus tratos, condições de hotelaria tão más ou piores do que nos piores presídios a mesma situação denunciada há quase cem anos antes.

A colônia, um dos espaços utilizados para excluir o louco, perdeu sua função e se tornam anacrônicos urbanos mesmo porque, num país que se industrializava e se urbanizava rapidamente, a reeducação para o trabalho rural tornava-se algo sem função.

A assistência psiquiátrica pública se mostrava lenta a medida que desconhecia mudanças significativas que sofria a prática psiquiátrica na Europa e nos Estados Unidos, a partir do período da segunda grande guerra, e em se adaptar às modificações por que passava a sociedade brasileira.

A psiquiatria só será chamada a dar sua contribuição efetiva e adquirirá o status de prática assistencial de massa após 1964 ou seja, com o movimento militar se constituindo como

“o marco divisório entre uma assistência eminentemente destinada ao doente mental indigente e uma nova fase a partir da qual se estendeu a cobertura à massa de trabalhadores e seus dependentes. Dadas as já mencionadas precárias condições dos hospitais da rede pública, que permaneceram reservados aos indivíduos sem vínculo com a previdência, e a notória ideologia privatista do movimento de 64, alegando-se ainda razões de ordem econômica, optou-se pela contratação de leitos em hospitais privados, que floresceram rapidamente para atender à demanda”. (RESENDE, 1990. p. 61)

A incipiente rede ambulatorial disponível à época funcionava exclusivamente como malha de captação de pessoas para hospitalização. O período 1965/70 pode ser caracterizado pelo fenômeno do afluxo maciço de doentes para unidades hospitalares da rede privada com um frouxo controle dessas internações que tinham duração de até três meses.

Resende ao realizar um balanço da atenção ao doente mental no Brasil até a segunda metade da década de 60 não identifica a configuração de uma política 22 para o setor, dando assim preferência ao termo tendência entendendo ser este mais conveniente para efeito de análise assim, a assistência psiquiátrica no Brasil assume o papel que sempre lhe coube na história, o de recolher e excluir os “indesejáveis sociais”.

“Na realidade, o problema das instituições psiquiátricas revelava uma questão das mais fundamentais: a impossibilidade, historicamente construída, de trato com as diferenças e os diferentes. Em um universo das igualdades, os loucos e todas as maiorias feitas minorias ganham identidades redutoras da complexidade de suas existências. Opera-se um identificação entre diferença e exclusão no contexto das liberdades formais e, no caso da loucura, o dispositivo médico alia-se ao jurídico, a fim de basear leis e, assim, regulamentar e sancionar a tutela e a irresponsabilidade social”. (RESENDE, 1990. p. 48)

Na década de 80 a saúde mental, no Brasil, vivenciou inflexões fundamentais para a mudança da assistência psiquiátrica até então pautada exclusivamente no modelo hospitocêntrico, caracterizado por uma ausência de preocupação com projetos efetivos para a reabilitação psicossocial da clientela que assiste.

O processo denominado Reforma Psiquiátrica estabelecido a partir da década de 70 emerge em um momento de abertura política, marcado com o início do fim da ditadura militar no Brasil respondendo assim, a demanda do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental 23 primeiro e relevante ator na modificação na área.

De acordo com Amarante,

“ está sendo considerada como reforma psiquiátrica um processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria”. (...) Tem como fundamentos não apenas uma crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também, - e principalmente – um crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas”. (AMARANTE, 1995. p. 87)

Nesse mesmo período é fundado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES, que vai organizar a discussão na área, congregando profissionais da saúde, promovendo debates, pesquisas e lançando a revista “Saúde em Debate”, com o objetivo de produzir e organizar o pensamento e as críticas no campo da saúde pública.

Em 1987 acontece a I Conferencia Nacional de Saúde Mental – em desdobramento à 8ª Conferência Nacional de Saúde - onde se tornaram públicas as críticas ao modelo assistencial baseado exclusivamente nas internações hospitalares, afirmando assim a necessidade da reforma com o objetivo rever esse modelo assistencial, ainda vigente. É importante destacar que esse período também é marcado pelo surgimento dos serviços de base comunitária denominados serviços extra hospitalares.

Após cinco anos acontece II Conferência Nacional de Saúde Mental marcada por uma ampla mobilização - estima-se que em torno de 20.000 pessoas participaram desse processo – que teve como um dos pontos relevantes o aprofundamento nas críticas no modelo assistencial 24 .

Em dezembro de 2001 aconteceu a III Conferência Nacional de Saúde Mental como tema principal a discussão da cidadania e doença mental e propõe “reversão da tendência hospitalocêntrica e psiquiatrocêntrica”, dando prioridade ao sistema extra-hospitalar e multiprofissional.

A pauta de discussão da conferência contempla ainda o credenciamento pelo setor público de leitos hospitalares em hospitais psiquiátricos tradicionais, com redução progressiva dos existentes, substituindo-os por serviços alternativos; a proibição da construção de novos hospitais psiquiátricos; a implantação de recursos assistenciais alternativos como hospital-dia, lares protegidos, núcleos de atenção, etc., a recuperação de pessoas cronificadas em serviços extra-hospitalares; assim como a emergência psiquiátrica funcionando em emergências de hospitais gerais.

No que tange ao resgate da cidadania propõe retirar a internação psiquiátrica como ato obrigatório do tratamento psiquiátrico e inclui como direito do indivíduo acessar seu prontuário médico permitindo a este o direito não somente escolher o tipo de

tratamento e terapeuta como também garantias legais contra internações involuntárias.

O ano de 2001 ocorre uma a ampliação e intensificação do debate sobre a Reforma Psiquiátrica para o plano legislativo, tendo-se em vista a mudança da legislação psiquiátrica vigente assim, temos o que se considera como um marco de extrema importância para todo esse processo da reforma que foi a promulgação da lei 10.216 25 de 06/04/2001, que redireciona o modelo assistencial e garante os direitos aos portadores de transtornos mentais.

Tal lei propõe a extinção progressiva dos manicômios com a sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória. Tal instrumento da Reforma Psiquiátrica prevê assim, que a assistência seja centrada no atendimento em instituições extra-hospitalares, que não desvinculem o problematizado mental de seu meio social, e que seja constituída de ações planejadas em direção a uma desativação gradual das grandes estruturas manicomiais existentes no país 26 .

Acontece em dezembro do mesmo ano a III Conferência Nacional de Saúde Mental marcada por um momento de desenvolvimento de diversas experiências de implementação de novos modelos de atenção, publicação de portarias ministeriais assim como, a difusão novas modalidades assistenciais na tabela de financiamento 27.

Caracterizados hospital e prisão nos possibilitam pensar as formas de intervenção aos “indesejáveis sociais” sejam eles de que natureza for contudo, existe se podemos assim dizer uma outra categoria ou seja, excluído entre os excluídos surge o louco infrator ou o infrator louco que suscitará um tratamento diferenciado como veremos mais adiante.

Assim no próximo item se pretende demonstrar como a categoria social “louco criminoso” enseja, o nascimento no Brasil, em fins do século XIX, todo um complexo aparelho jurídico-institucional voltado quer para o tratamento médico, quer para a contenção repressiva dos comportamentos julgados anormais. (CARRARA, 1998)

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE MANICÔMO JUDICIÁRIO

A instituição a qual se deu a experiência de estágio é o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo – HR. Antes porém, se faz conveniente abordar como foi constituída genericamente a instituição “Manicômio Judiciário” assim como, suas bases de fundação e sustentação.

Nos itens anteriores pudemos constatar que a patologia mental e o desvio, quase sempre associados, remetem a práticas e representações elaboradas pelas sociedades e, que ao longo dos séculos dão sentido a mecanismos históricos – como a prisão e o hospital - que condicionam a emergência de seu domínio.

O consórcio elaborado entre Psiquiatria e Direito Penal fundamentados por um discurso comum materializa-se em uma nova disciplina que sustenta a fundação de um novo estabelecimento, ou seja um espaço social designado ao louco infrator.

Assim foi por volta de 1896, a partir da fuga do interno Custódio Alves Serrão do Hospício Nacional de Alienados, e sucessivamente em 1920 com outra fuga de internos da mesma instituição, se retomam as discussões sobre o tema, reforçando a necessidade premente e inexorável de se fundar uma instituição que fosse capaz de abrigar não apenas os loucos criminosos como também os criminosos loucos.

Criado por decreto em 1921, no Rio de Janeiro, para receber – e deter – os indivíduos classificados como loucos pela Medicina Psiquiátrica e infratores pelo Direito Penal 28 , o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro foi a primeira instituição do gênero fundada na América Latina.

O manicômio judiciário

“como hospital, possui médicos e enfermeiros encarregados de tratar os “pacientes” até a sua “recuperação”. Para conter os internos mais violentos, aplicam-se medicamentos psicotrópicos. Como prisão, o Manicômio, possui guardas penitenciários que aplicam métodos mais “convencionais” para manter a “ordem” dentro da instituição. Constantemente presentes, lidam com o cotidiano dos internos”. (CARRARA, 1998. p. 17)

Inicialmente denominada “Seção Lombroso” do Hospício dos Alienados, o manicômio judiciário ou hospital de custódia, é uma instituição médico/carcerária destinada a guarda/tratamento psiquiátrico de indivíduos que cometeram ato delitivo previsto em nosso código penal como crime e que, por terem sido considerados inimputáveis 29, foram absolvidos da responsabilidade penal, pelo juiz de direito, e submetidos à medida de segurança.

Dito de outra forma se, declarada a inimputabilidade pela justiça, o agente não é condenado, e sim, absolvido, mas fica sujeito à medida de segurança entendida como “medidas de prevenção e assistência social daqueles que, sejam ou não penalmente responsáveis, praticam ações previstas na lei como crime”. 30 .

Assim, com periculosidade presumida por lei, os inimputáveis, são inseridos no contexto criminal, tendo como prerrogativa serem considerados, “criminosos em potencial”, ou seja, podem a qualquer momento praticar ato criminoso.

Pode-se inferir ao conceito da periculosidade a relação estabelecida entre doença mental e criminalidade. Assim, a figura jurídica instituída ao agente em questão, tem como fulcro um conceito que pressupõe sua temibilidade ou seja, sua probabilidade de tornar a praticar crimes.

Nos diz Cohen (1996. p. 73) “visto que, um doente mental, não pode ser considerado legalmente como criminoso, mas por outro lado, não se pode negar que foi ele um infrator da lei sendo até considerado como legalmente perigoso 31 , criou-se a figura jurídica da medida de segurança”.

Cohen (1996. p. 78) observa ainda que “ a periculosidade não está vinculada ao ato em si, mas sim à falta de compreensão do indivíduo que vai infringir uma proibição legal ou à sua incapacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

Segundo art. 96 do Código Penal as medidas de segurança podem ser internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou sujeição a tratamento ambulatorial. Ambos por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de um a três anos 32 .

Ao concluírem a medida de segurança, as pessoas internadas em hospital de custódia, são submetidas a novo exame por perito forense, para averiguação com vista a cessação de periculosidade.

Ao exame são anexados pareceres (laudos), elaborados por uma Equipe Técnica Multidisciplinar e, são encaminhados ao Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais. Não obstante, antes mesmo dos exames, o juiz poderá prorrogar a medida de segurança por mais de um ano.

A conseqüente soltura (desinternação) só se realiza com um responsável, que assume frente ao Juiz total compromisso sobre os atos doravante praticados pelo preso. Deste modo, a manutenção dos laços familiares é crucial, pois é uma das vias possíveis de acesso à liberdade

A desinternação, será em caráter condicional tendo a possibilidade de ser restabelecida a situação anterior, se o agente, antes do decurso de um ano, praticar fato indicativo de sua periculosidade.

No Estado do Rio de Janeiro cabe responsabilidade de zelar pela atenção à saúde daqueles que ser encontram em conflito com a lei à Superintendência de Saúde da Secretária de Estado de Direitos Humanos e Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro – SEDHSP-RJ.

O “Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo” - HR - constitui-se uma unidade hospitalar da SEDHSP-RJ e, destina-se à custodiar e tratar pessoas do sexo masculino “que cometeram delitos em virtude de serem portadores de condutas antisociais, doença mental, desenvolvimento mental incompleto, dependência química sendo considerados de alta periculosidade.

Sua população é oriunda de delegacias, presídios e hospitais de várias regiões do Estado, internados por determinação judicial para observação, tratamento e exames de sanidade mental por peritos forenses”. (COSTA, [s.d.])

No que tange aos espaços físicos, a instituição é dividida em dois prédios, ambos com dois andares, com três pátios externos, dois internos e um estacionamento.

O HR é uma instituição de caráter fechado, destaca-se por seus muros altos, que isolam aqueles que representam uma ameaça à sociedade.

Um grande portão de ferro, se constitui, a única via de acesso ao interior da instituição tanto para pedestre, quanto para veículos. Sendo constantemente vigiado por agentes penitenciários que encarregados pelo controle de entradas e saídas de todos que ali ingressam.

Adentrando o HR existe um pátio, que funciona também como estacionamento para veículos de funcionários. Nele existem árvores e canteiros, os quais são mantidos pelos internos. Cabe aqui a observação que o acesso é exclusivo dos “faxinas”, “moradores” da Casa de Transição e funcionários, sendo de acesso restrito aos demais internos.

De acordo com Goifman “a idéia de limite se revela fundamental para compreensão do espaço de vigilância na prisão. Limita-se a conter e vigiar, o espaço de circulação do preso”. (1999. p. 72)

A estes, é reservado o segundo pátio externo, que se situa nos fundos da instituição, onde não existe qualquer tipo de vegetação. O que nos dá a impressão que as plantas se recusam a nascer em um ambiente manicomial.

O espaço físico destinado a internos apesar de serem denominadas “enfermaria” as quais são coletivas, compostas com camas em cimento armado, assemelham-se a “celas”, já que na entrada existe um portão com grades, que é trancado após às 20:00. São identificadas por letras (“A”, “B”, ...) distribuídas em três andares ligados por escadas, sendo, o andar térreo destinado aos internos idosos e cronificados.

Existe ainda as “enfermarias especiais” estas são individuais e, ocupadas por “novatos” que permanecem ali (no mínimo, sete dias) para observação de sua conduta; em casos de desobediência as regras disciplinares da segurança e, em situações de agitação psicomotora do interno.

A arquitetura do prédio onde estão localizadas enfermarias oferece a sensação de se estar andando em círculos, causando uma confusão mental, fazendo com que se perca a noção espacial.

Atualmente não encontramos instituições circulares, mas o importante é identificar princípios similares de nítida e assumida inspiração do projeto arquitetônico panóptico – projeto de prisão orientado a funcionalidade que organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente, onde a visibilidade torna-se uma “armadilha” onde a visão se dá de forma unilateral e a sensação de estar sendo vigiado é constante. (GOIFMAN, 1999)

Nas “enfermarias”, pode-se constatar que os internos reinventam seus espaços de diversas formas. Uns, “decoram” com objetos trazidos pelos familiares e amigos, outros guardam toda sorte de pequenas coisas que lhes tragam algum sentido de individualidade. Os internos tentam assim, marcar seu território impondo limites visuais aos seus companheiros através ordenação dos espaços.

As condições de higiene são satisfatórias, em relação a outras Unidades DESIPE. Cabe observar que o sistema penitenciário não conta com recursos humanos que ocupem tal função, cabendo assim, ao “faxina 33 ”, executar.

Identifico que a instituição é marcada por ambigüidades que vão desde a legislação 34 que a suporta até a identidade auto-atribuída aos internos: as equipes técnicas os reconhecem como “pacientes”, os responsáveis pela segurança da instituição por “presos”. Os internos estão distribuídos em equipes multidisciplinares que, prestam atendimentos sistemáticos em consultórios e oficinas terapêuticas.

Contudo, cabe aqui observar que nestes espaços não há privacidade, já que as portas permanecem abertas e, constantemente, acontecem interrupções seja por enfermeiros, agentes e até mesmo outros internos que aguardam atendimento. Entretanto, quando solicitado pelo interno e/ou família pode ocorrer em ambiente reservado.

As atividades terapêuticas desenvolvidas nesta unidade objetivam a reinserção do interno a sociedade através de oficinas, grupos, trabalhos intra/extra-muros, coral, entre outros.

Existe por parte dos internos uma urgência com todas as questões que lhes envolvem, especialmente no que tange a situação familiar e jurídica. Este tipo de demanda é encaminhada ao assessor jurídico do HR.

Alguns internos demonstram indignação face a morosidade da justiça, assim na tentativa de buscar solução imediata para sua situação solicitam “travessia” (transferência e em alguns casos com sucesso) para outras unidades do DESIPE.

O ESTÁGIO NO HR: LIMITES E POSSIBILIDADES

A partir das abordagens anteriores pudemos entender como foi constituída e legitimada a instituição “Manicômio Judiciário”. Identificamos suas bases de fundação e sustentação percebendo que a periculosidade é o conceito que justifica a manutenção de pessoas nesse espaço institucional. Contudo, em alguns casos, mesmo após a verificação do encerramento do estado perigoso algumas pessoas lá permanecem pela ausência de suporte familiar.

Com o objetivo de intervir nessa questão participei enquanto estagiária de Serviço Social ( março 2001) na construção de um projeto ainda em sua fase inicial que além da Assistente Social contou com a colaboração informal e assistemática da Terapeuta Ocupacional.

O “Projeto de Investigação Social”, uma das frentes de trabalho implantada pelo Serviço Social no HR, contempla os presos com laudo de cessação de periculosidade e, que não contam com nenhuma visita de familiar desde que ingressaram na unidade, muitos inclusive com décadas de isolamento.

Distribuição por tempo de internação 35

Anos

N.º

até 20

7

21 – 30

5

31 – 40

4

TOTAL

16


Em abril e maio de 2001 foi estabelecida uma rotina de levantamento de internos na situação descrita e uma metodologia de trabalho.

Distribuição por faixa etária (em anos):

Faixa Etária

N.º

até 50

2

51-60

7

61-70

5

mais de 70

2

TOTAL

16


Minhas atividades no HR se constituíram em observação participante 36 das atividades desenvolvidas pelos técnicos, atendimentos realizados pela assistente social (supervisora), reuniões da equipe técnica multiprofissional 37 , além de leitura de aparatos legais: LEP, Lei Reforma Psiquiátrica, entre outros.

Enquanto estagiária do HR - a partir de um treinamento adequado, por parte do supervisor de campo - pude contribuir no processo de sistematização dos procedimentos de abordagem aos internos de forma a resgatar sua memória isto é, sua história de vida anterior ao delito com a perspectiva de envolvê-lo no projeto.

Após essa etapa, pude acompanhar/realizar, sob supervisão constante, um acompanhamento sistemático dos internos, visando levantar dados e informações referentes a sua história de vida, retornando com essas informações para o acompanhamento terapêutico multiprofissional.

A investigação utilizou procedimentos que envolvem além do resgate da memória dos presos, também o rastreamento de sua vida anterior, procurando-se localizar sua entrada no sistema, os estabelecimentos pelos quais passou e o processo penal que originou a medida de segurança buscando assim, recuperar seus documentos de identificação: registro de nascimento, etc.

Com a localização das famílias, espera-se viabilizar sua integração nos projetos existentes, que atuam no sentido de criar formas de aproximação da família ao interno garantindo sua vida extra-muros.

Considero tal projeto de suma importância pois, pretende efetivamente resgatar uma dimensão fundamental dos direitos humanos dos doentes mentais, na prática condenados à prisão perpétua quando sem apoio familiar.

Contudo não basta “boa vontade” para que um projeto se efetive, o assistente social, apesar de ter relativa autonomia na efetivação de seu trabalho necessita de condições materiais que são fornecidas pela instituição no qual está inserido. De acordo com Iamamoto (1999 p.63) “ela organiza o processo de trabalho do qual ele participa”.

Uma das dificuldades encontradas neste sentido, referem-se diretamente aos limites da sua efetivação prática, como exemplo cito a necessidade de visitas institucionais impedidas devido a ausência de transporte.

Outra questão que minha avaliação contribuiu para a segmentação/fragilização do projeto, e que contribuiu para o andamento relativamente lento do mesmo, foi o fato de que não existir, na estrutura do DESIPE 38 , um sistema de informações integrado ou seja, uma relação interinstitucional que possibilite buscar informações sobre a população carcerária de forma geral.

Na prática cotidiana no hospital de custódia HR deparamo-nos com diversas pessoas em situação de abandono provocando nesse sentido inquietações que permearam desde o princípio nossa atividade principalmente o contraditório fato de que no Brasil, apesar de não contemplar em sua legislação a “prisão perpétua”, existem, milhares de pessoas, que estão condenadas a viverem até o fim de suas vidas em manicômios judiciários.

Contudo a ausência de apoio familiar se constitui apenas um aspecto que contribui para a “prisão perpétua” a que muitos são submetidos. Há outras situações em que o poder judiciário se sobrepõe ao terapêutico desconsiderando-o, desqualificando-o: como exemplo destaco uma situação, verídica e absurda, vivenciada na instituição onde, apesar do interno contar com apoio sócio-econômico (o que é raro) a desinternação foi indeferida pela juíza pois, o interno não viveria com este familiar e sim só, em seu próprio imóvel.

Identifico que existe uma lógica perversa e cruel que impera no sistema judiciário em geral, em particular o penitenciário. Entendo que há uma indução a mentira, a omissão por parte dos familiares já que, neste caso em particular “a verdade” não favoreceu ao interno. Percebo que há uma urgência em se rever a legislação que trata de “doentes mentais em conflito com a lei.

Nos dá a impressão de que pessoas que cometeram ato ilícito, tipificadas no código penal como crime, em particular aquelas consideradas pela justiça como inimputáveis, perderam qualquer chance de recuperação da sua autonomia.

Um estudo sobre o Perfil do Louco Infrator sob orientação do Dr. Pedro Gabriel Delgado constata que os índices de reincidência são muito baixos se comparados aos presos condenados.

“no acompanhamento do percurso institucional dos 165 pacientes - 147 homens e 18 mulheres – (...) em outubro de 1996. (...) 78 foram desinternados, 5 foram colocados em liberdade através de alvará e 4 foram transferidos para estabelecimento não prisional, perfazendo um total de 52,72 % de desinternação. Destes apenas 16 ou 18,39 % foram reinternados, sendo que somente 7 ou 8,04 % por novos delitos e os outros 9 porque o apoio sócio-familiar que possibilitou a desinternação não se manteve” (Kolker, 2001)

Nos casos onde os internos contam com um suporte familiar se faz premente ao Serviço Social estabelecer uma relação estreita e constante. Para isso realiza reuniões previamente programadas com o objetivo de manutenção de tal vínculo que, na maioria dos casos são tão frágeis e efêmeros que não se constituem uma unidade social de pertencimento.

Do total de 16 que compõe o universo de análise 11 se encontram em total estado de abandono.

Os 5 restantes conta com algum tipo de suporte familiar - além laudo de cessação, indicação favorável dos técnicos e concessão de algum tipo de benefício por parte do juiz - à recusa por parte dos familiares em recebê-los são justificadas em três (3) casos pelos traumas que estes causaram na família visto que os crimes tiveram como vítimas consangüíneos. Um destes inclusive face o rigor de crueldade utilizado pelo autor quando cogitada a hipótese de uma “visita” (deste) ao lar surgem por parte da comunidade local ameaças de linchamento visto a comoção que o crime causou.

Em dois (2) casos o motivo apontado é a insuficiência de recursos financeiros necessária para suprir necessidades básicas para regresso do interno ao lar.

Dos 11 (onze) em total estado de abandono, dois (2) já viviam em completa situação de mendicância, antes do crime (ou tentativa ) tendo como vítima “amigos” de infortúnio.

Considero o grupo com familiares uma das mais significativas frentes de trabalho desenvolvidas na instituição. Se constitui um espaço de reflexão onde a família pode expressar-se livremente expondo questões não apenas relativas aos internos como também, as que vivenciam no seu dia a dia.

Apesar de diferentes trajetórias foi possível identificar nos relatos questões que são comuns a todos os familiares como por exemplo, o preconceito que enfrentam não apenas por parte da sociedade mas também, de outros membros da família. Ou seja, a família em certa medida se encontra “presa” ao manicômio necessitando assim de acompanhamento constante.

Percebo muita resistência não apenas da sociedade que teme os marginalizados e os loucos, mas também entre alguns profissionais. Assim, o Manicômio Judiciário se constitui um grande desafio para os assistentes sociais pois cabe a este desconstruir representações negativas que envolvem o tema em questão ou seja, uma visão maniqueísta onde, de um lado, estariam bons elementos e do outro, os maus.

Acredito que papel do Serviço Social no HR é de suma importância pois a sua dimensão sócio-educativa presta orientações relevantes no sentido de permitir a fruição da cidadania dessas pessoas que ali se encontram

Identifico claramente no HR uma proposta terapêutica que concorre com uma estrutura manicomial tradicional onde muitos aderem ou seja, tentam se adaptar a lógica da cadeia para sobreviver,. Assim, se estabelece um conflito pois se por um lado se visa padronizar, controlar, por outro, há uma tentativa de amenizar o processo de massificação com uma nova proposta.

A reforma psiquiátrica tem preconizado no seu bojo além da reorientação do modelo assistencial, uma série de recursos institucionais tais como: hospital-dia, pensões protegidas, entre outros.

Um questionamento se faz premente até que ponto, e em que medida, tais conquistas preconizadas na reforma psiquiátrica, tem sido garantidas aos egressos do manicômio judiciário?

A questão das medidas de segurança e dos manicômios judiciários vem sendo um tema geralmente pouco abordado tanto no âmbito jurídico quanto nos fóruns de saúde mental.

De acordo com Kolker 39 , “excluídos dos excluídos, o louco infrator segue sofrendo o peso da superposição dos enquadres jurídico e psiquiátrico, mas alijado tanto da reforma pela qual vem passando a assistência psiquiátrica, quanto dos avanços da legislação penal”.

E finalmente, nos questionamos em que medida, e até que ponto, sobre até que ponto o Estado, responsável pela custódia dessas pessoas, pode contribuir no sentido de evitar a “prisão perpétua” a que muitos estão submetidos.

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ZAFFARONI, Eugênio. A criminologia como instrumento de intervenção na realidade. Revista da Escola de Serviço Penitenciário do Rio Grande do Sul. Secretaria de Justiça, 1990.

NOTAS

1 Perigoso é um adjetivo que se atribui a alguém que se pode prenunciar alguma circunstância danificante; é o sentimento oposto à confiança.

2 Em seu estudo clássico, Goffman chegou a mostrar que “uma única estrutura de relações sociais poderia ser encontrada tanto em presídios como em manicômios, ambos podem ser bem compreendidos através de um único conceito: o de Instituição Total. (Goffman, 1974).

3 Idem, p.135

4 As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001; Punir os pobres: a nova gestão da miséria no Estados Unidos. Rio de Janeiro, Freitas Bastos. Col. Pensamento Criminologico, 2001

5 Identificamos assim uma estrutura hierárquica no crime composta por presos “diferenciados”: existem presos ligados a um exercício intelectual – contrabando, tráfico de drogas e armas, formação de quadrilha, entre outros crimes sem esquecer no crime de “colarinho branco” enquanto que de outro lado, temos crimes que não requerem qualquer tipo de “especialização” se podemos assim dizer, o denominado “ladrãozinho”, “vacilão”, que em sua maioria pratica pequenos furtos muitas das vezes relacionados a necessidades imediatas com por exemplo manutenção vício de drogas.

6 ZAFFARONI, Eugênio Raul. “A criminologia como instrumento de intervenção da realidade”. Palestra proferida no I Fórum de Debates sobre o Processo de Prisionalização no Sistema Penitenciário; Promovido pela Escola de Serviço Penitenciário do Rio Grande do Sul e Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, de 21 a 24 de março de 1990 em Porto Alegre. Mimeo.

7 Disponível http://www.mj.gov.br/Depen/sistema_brasil.htm capturado em 11/06/2002

8 Segundo o Ministério da Justiça, não há um número preciso dessa população.

9 Ainda no relatório no Estado do Rio de Janeiro nas 33 instituições prisionais existentes o quantitativo de presos era de aproximadamente 20.766. Dessa soma, 15.627 condenados e 5.099 aguardando condenação.

10 A prisão, de acordo com Goffman, é considerada uma instituição total, pois tem características de fechamento, sendo seu caráter simbolizado pela barreira à relação com o mundo externo, participação involuntária e proibições à saída, incluídas no esquema físico de segurança: portas trancadas, muros altos, guardas armados. O autor diz ainda que nas instituições totais, considerando aqui as prisões, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade; cada fase diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de pessoas que são obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto; todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários. ver mais em Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perpectiva, 1974.

11 KAFKIANO adj. Cujo absurdo e o ilogismo sugerem a atmosfera dos romances e contos de Franz Kafka.

12 Organização das Nações Unidas. Regras mínimas para tratamento de reclusos. Rev. Arquivo Ministério da Justiça 1970.

13 HUMAN RIGHTS WATCH. O Brasil atrás das grades. Rio de Janeiro, Human Rights Watch, 1998.

14 A pena de prisão se expressa em penas privativas de liberdade: em regime fechado, semi-aberto e aberto e, penas restritivas de direitos que em tese não são respeitados por inúmeras razões. A cadeia então não existe para os presos, está sim nos fluxos do controle social.

15 Previsto na Constituição e na Lei de Execução Penal (Lei n.º 7210 de 11/07/84)

16 O uso indiscriminado do termo se refere ao sistema prisional de uma forma geral independendo do significado referido visto que, atualmente face ao crescimento do da população carcerária esse tipo de classificação se torna obsoleto na prática. Os presídios têm em tese “a finalidade apenas custodial, já que abrigam pessoas sobre as quais a justiça não proferiu julgamento e gozam portanto, de suspeita de inocência”. As penitenciárias contam com uma estrutura administrativa mais completa no que tange aos “serviços prestados, tendo em vista a permanência mais demorada do interno, pelo cumprimento da pena”. (CELEM 1983. p.22). Atualmente contamos ainda com a figura jurídica da Casa de Custódia – estrutura que não está formalmente inserida no sistema do Departamento do Sistema Penitenciário – DESIPE – órgão encarregado no Rio de Janeiro pelo cumprimento das penas privativa de prisão. Têm a função de custódia judiciária, sua guarda é feita por policiais militares, a população que a integra tem como perfil jovem que não podem aguardar o julgamento/sentença em liberdade, sendo caracterizados como “rebeldes” diretamente relacionada ao fato de não contarem com os “direitos” extensivos aos apenados.

17 RESENDE, Heitor. “Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica”. TUNDIS, Silvério Almeida e COSTA, Nilson do Rosário (orgs.) Cidadania e loucura - Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 15-74. Coleção Saúde e Realidade Brasileira

18 Não é uma simples coincidência que exatamente estas três atividades, sejam até hoje propostas como técnicas de tratamento e ressocialização dos doentes mentais já que respeitam as diferenças individuais.

19 Pinel (França), Tuke (Inglaterra), Chiaruggi (Itália), Todd (Estados Unidos), entre outros, serão os principais protagonistas de um movimento de reforma através do qual, pela primeira vez, os loucos seriam separados de seus colegas de infortúnio e passariam a receber cuidado psiquiátrico sistemático.

20 MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Angela; LUZ, Rogério e MURICY, Kátia. Da(n)ação da Norma - medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978

21 O autor percebe que a trajetória da atenção ao doente mental nos primeiros cem anos “foi relativamente linear, as mudanças mais de natureza quantitativa do que qualitativa, suas funções bastante transparentes, numa sociedade ainda pouco complexa com o aparelho de Estado pouco diversificado”. (Resende, 1990:37)

22 Resende entende o conceito de política no senso comum restrito, com perfeita aplicabilidade aqui, “como uma equação de dois braços, representada de um lado por um conjunto de intencionalidades e do outro por práticas concretas, conjunto este que apresenta uma certa continuidade no tempo e significação geográfica que ultrapasse os limites das experiências micro-regionais”. (Resende, 1990:16)

23 Sobre a trajetória do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental consultar AMARANTE, Paulo. (org.) Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2ºed.

24 É importante destacar que esse período foi é marcado pelo acontecimento de eventos significativos como o Encontro de Trabalhadores que ocorrido em1987 que se constitui um marco na ocasião, lança-se o lema: “Por uma sociedade sem manicômios”; a Declaração Caracas em 1990; projeto de Lei 3.657 de autoria do deputado Paulo Delgado que potencializou o debate em todo Brasil - a partir da implantação desse projeto que realmente as discussões se aprofundaram e isso foi refletido em todos os estados brasileiros; E implantação do SUS, em 1990, onde deu-se início a iniciativa da coordenação da política nacional de Saúde Mental.

25 Importante ressaltar que, mesmo sem promulgação da lei, alguns estados brasileiros - Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco, entre outros - aprovaram leis estaduais inspiradas nesse projeto federal, desenvolvendo e ampliando, com êxito, as propostas da Reforma Psiquiátrica.

26 Fundamental nesse processo é a crescente mobilização das associações de usuários, familiares e profissionais que propiciam novas formas de inserção e participação social. - então um aumento maciço nas associações de usuário e familiares e foi bastante representativo nessa Conferência Nacional de Saúde Mental.

27 Podemos citar como exemplo as residências terapêuticas: locais reservados a pessoas que apresentam na maioria das vezes internos a muito tempo em hospitais psiquiátricos e que não contam vínculo familiar social, se constituindo este um serviço transitório da internação para o atendimento ambulatorial.

28 Para maiores detalhes sobre a Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro ver em CARRARA, 1998; MACIEL, 1999

29 De acordo com o artigo 26 do Código Penal se considerado inimputável é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento

30 Exposição de motivos. Código penal brasileiro comentado. São Paulo: Brasiliense, 1989. V.1

31 Perigoso é um adjetivo que se atribui a alguém que se pode prenunciar alguma circunstância danificante, é o sentimento oposto a confiança

32 No código penal em ser artigo 26 em seu Parágrafo Único: A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude da perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardo não era inteiramente capaz de entender o ilícito do fato ou determinar-se de acordo e com esse entendimento.


33 Faxina” se constitui uma das atividades terapêuticas ocupacionais desenvolvidas no HR. Os internos denominados “faxinas” selecionados pela equipe multiprofissional, são responsáveis pela manutenção das condições de higiene e, executam serviços de limpeza na própria instituição recebendo um pecúlio proveniente do serviço prestado

34 Ver em Lei 7.210 de 11/07/1984 Lei de Execução Penal e Legislação em Saúde Mental. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação – Geral de Documentação e Informação. Legislação em Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2000. Legislação em Saúde n.º4

35 Do população de internos que em março de 2002 totalizava 144 foram selecionados aqueles que apresentam dez anos ou mais de internação.

36 A técnica de observação participante possibilita ao “observador, enquanto parte do contexto de observação, estabelecer uma relação face a face com os observados. (...) ele pode modificar e ser modificado pelo contexto.” (Minayo, 1994:59)

37 Se constitui um fórum de deliberação sobre os internos nesse sentido pude perceber a correlação de forças, as tendências, as posições de cada técnico, de forma particular, assim como seus posicionamentos durante o momento de decisório.

38 Departamento do Sistema Penitenciário – responsável pela pena privativa de prisão no Estado do Rio de Janeiro

39 KOLKER, Tânia. Texto apresentado no Seminário: “A Segregação dos Excluídos pela Via Institucional: Prisões, Manicômios e Internatos”. UERJ, 2001. Mimeo



* Datos sobre la autora:
* Andréa dos Santos Silva Medeiros
Assistente social
Rio de Janeiro - Brasil
andrea_medeiros@ig.com.br

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