Sabe-se
que o messianismo político foi um ingrediente decisivo nas
vitórias eleitorais de Carlos Menem, Fernando Collor e
Fernando Henrique Cardoso em contextos de descontrole inflacionário,
demandas sociais reprimidas e expectativas populares
super-dimensionadas.
Mas poucos perceberam que o messianismo, além
de eficiente recurso eleitoral, tornou-se também uma
variável-chave na formulação das políticas
econômicas do Brasil e da Argentina. O fundamentalismo de
mercado obteve a proeza de converter o planejamento econômico
em sebastianismo, de sofismar o debate estratégico em vigílias
por milagres. As elites econômicas locais e sua tecnoburocracia
conexa confiaram a terceiros suas responsabilidades políticas,
acreditando que receberiam três graças:
a
moeda se estabilizaria ancorada no mercado de capitais de curto
prazo;
os
investimentos se avolumariam na medida em que fossem maiores as
facilidades de deslocamento do capital estrangeiro e maiores as
oportunidades de negócios a ele oferecidas;
a tecnologia seria transferida automaticamente a partir das relações
de parceria no interior das redes transnacionais atraídas
para a região.
Esses
fundamentos fariam algum sentido se as
promessas da política econômica
tivessem sido cumpridas com o devido respeito.
A devoção farisaica escondia, no fundo, a
ausência de projeto estratégico e
de consenso entre as elites políticas.
Esse projeto mínimo compreenderia:
racionalização da máquina estatal, política
de arrecadação e de ajuste fiscal, políticas de
estímulos à exportação de produtos com
maior valor agregado e políticas industriais e agrícolas
conglomeradoras e inovacionais.
Esperando
a morte
Os
Governos de Brasil e Argentina,
destituídos desses instrumentos de
intervenção, tiveram
que apelar para o bezerro de ouro do endividamento
interno e externo, através da
venda de títulos de curto prazo, remunerados com juros
crescentes.
Esse mecanismo de financiamento não só
comprometeu o equilíbrio fiscal
como estrangulou ainda mais o já
combalido setor produtivo de ambos,
com impacto extremamente negativo nas respectivas balanças
comerciais.
Economias assim tão
vulnerabilizadas não teriam
como se imunizar frente aos efeitos de qualquer crise internacional.
Despidos de todas as proteções, o que poderia
livrá-los do mal?
A
crise asiática em 1997 e depois a russa em 1998, produziram
uma formidável fuga de capitais no Brasil acarretando a
desvalorização do real em 1999 e a necessidade de um
novo acordo com o FMI. A partir desse momento, com a impossibilidade
de continuar realizando superávits comerciais junto ao Brasil
e com o fim do estoque de empresas privatizáveis, a Argentina
teve que enfrentar o seu martírio.
A recessão
norte-americana, reconhecida somente em 2001, e seu efeito imediato
de reconcentração de capitais teve um impacto
catastrófico sobre a Argentina , que insistiu em manter a
mesma política cambial e monetária. As bolsas de Buenos
Aires e de São Paulo e o mercado de câmbio na região
sinalizam: os investimentos estrangeiros estão de partida.
Países
desmantelados e falidos não tem nenhum poder de negociação
internacional. Brasil e Argentina só podem então
esperar, esperar sua sorte, esperar incansavelmente Godot e a
globalização. Mas quem chega, no final, é Pozot,
o FMI com seu cordão de países-escravos.
A nobre
missão: assegurar a sustentabilidade das duas
economias, ou seja, garantir a continuidade de pagamento dos
extorsivos contratos de dívida. As dezenas de bilhões
de dólares pagas como serviço de dívida externa
por esses países cumprem não apenas o papel de
lastreamento da orgia especulativa dos bancos credores
internacionais. Essa duradoura hemorragia financeira serve antes de
tudo para impedir o surgimento de pólos econômicos
rivais na área de influência norte-americana.
Existe
um sub-reptício papel geopolítico do FMI: impor
camisas-de-força ao
países
devedores ou blocos de países que adotem uma dinâmica
centrífuga ao Império. E há o explícito
papel econômico da Área de Livre Comércio das
Américas: rearticular os setores econômicos dinâmicos
sobrantes dos países latino-americanos em uma meta-rede
hegemonizada pelos oligopólios norte-americanos.
No
desespero de esperar demais
Como
chegamos a esse quadro de absoluta subordinação? A
história nem sempre foi assim. Brasil e Argentina, no século
XX, oscilaram em contextos de maior alinhamento ou de maior
autonomização frente aos EUA. A redemocratização
dos dois países na década de 80, em um quadro
internacional crescentemente competitivo, levou-os aos trilhos da
cooperação. O objetivo de se criar um mercado comum no
sul do continente americano espelhava uma percepção
comum das limitações de ambos países, se
isolados, e do imenso potencial que teriam, se integrados,
somando-se ainda o Paraguai e o Uruguai.
O
Mercosul, inspirado no processo de integração europeu,
visava preencher as velhas lacunas de nossas economias: pequena
escala de produção, mercado interno pífio,
ausência de poupança interna e de geração
endógena de tecnologia. Ao mesmo tempo, assumia para si uma
nova missão, inescapável na nova ambiência
internacional : a especialização de setores e regiões
tanto para atrair investimentos estrangeiros diretos como para
projetá-las como pólos exportadores.
A
complementaridade econômica regional e a criação
de um mercado interno massivo só se viabilizariam com uma
adequada conexão com o mercado mundial, incorporando-se
vantajosamente aos fluxos de capitais e de tecnologias.
O
conceito de protecionismo ampliado que vigorou nos
processos integracionistas latino-americanos do passado tinha de ser
superado por políticas regionais de inserção
ativa. Esse é o sentido primeiro da teoria do regionalismo
aberto. Contudo, essa teoria foi traduzida em políticas
externas letárgicas que pressupunham uma forte automaticidade
entre as medidas de abertura e desregulamentação por um
lado e o crescimento econômico ótimo, por outro. O
Mercosul foi encarado apenas como um estágio intermediário
para uma automática e desejada integração
global.
Essa
interpretação , apesar de não assumida
oficialmente, foi a que prevaleceu concretamente na administração
do processo negociador do Mercosul na última década. Em
direção contrária ao seu destino(um Mercado
Comum), o Mercosul se limitou a realizar uma desgravação
parcial das tarifas de comércio entre os países-membros
sem a definição de uma política comercial comum,
ou seja de um Tarifa Externa Comum minimamente coerente, e também
sem políticas de qualificação e competitividade
da economia regional. O bloco, com tais traços de
desarticulação, sequer pode ter uma identidade
conceitual. Quiçá podemos defini-lo, com desalento,
como algo entre uma zona de livre comércio incompleta e uma
união alfandegária imperfeita.
Esperando o dia de esperar ninguém
Esse
projeto de escape e de auto-descoberta ao mesmo tempo, foi
deliberadamente sabotado, por tecnocracias apátridas cuja
tarefa principal sempre foi o desmonte e o sucateamento de seus
países. Elas dão notícia do falecimento do
Mercado Comum do Sul (1991-2001). A Causa mortis: eutanásia
induzida. Uma pequena e possível biografia: era uma vez um
Mercado Comum do Sul que proporcionaria a modelagem de teias
econômicas regionais fincadas na solidariedade e na democracia
real.
Agora, em seu velório, não iremos esquecer que o
Mercosul poderia ter resgatado dezenas de milhões de
excluídos dos nossos países. Confessaremos que um dia
sonhamos com um bloco que uniria crescimento/progresso técnico
com bem-estar coletivo/geração de oportunidades de
vida para todos. Lamentaremos as suas enfermidades crônicas,
estimuladas pela negligência e pela sabotagem daqueles que
deveriam zelar por ele. Com pesar choraremos seu malfadado destino :
ficar a mercê de mãos assassinas.
Pode-se
prender, cercar e isolar pessoas e povos mas quem pode suprimir o
desejo de derrubar todos os muros erguidos pela grande mão
invisível? O projeto cooperativo e internacionalista
continuará vivo e pulsará no coração da
América do Sul. O Mercosul morreu? Viva o Mercosul!