Engana-se
aquele que imagina a Área de Livre Comércio das
Américas apenas como uma imensa zona franca. O projeto das
elites expansionistas norte-americanas passa pela construção
de uma institucionalidade adequada a seus novos arranjos econômicos
e organizacionais. A conjuntura mundial extremamente favorável
aos interesses do Império, agora vistos como os interesses do
Ocidente livre e cristão, fará da ALCA um
conveniente laboratório para a aplicação do
direito instantâneo e de fato dos grandes grupos
oligopólicos norte-americanos. A inspiração vêm
do Acordo Multilateral de Investimentos, o plano estratégico
do grande capital, que almeja fornecer uma nova racionalidade,
universalidade e legitimidade à economia das redes globais. Em
termos táticos e de curto prazo, visa legalizar o desmonte de
cadeias econômicas internas e criminalizar políticas
que possibilitem a geração e proteção de
investimentos, emprego e renda para nacionais.
As
novas elites internacionalizadas, tendo como núcleo duro as
altas finanças e as grandes corporações
norte-americanas, procuram eliminar as antigas e inconvenientes
referências de legitimação: o Estado, a nação
e a democracia. Precisam tornar respeitável e necessário
tanto o canibalismo econômico quanto a anulação
das identidades. E ainda como precaução, pretendem
suprimir os últimos resquícios de autonomia esvaziando
os sistemas políticos de representação e de
administração pública.
Os
interesses dos oligopólios privados norte-americanos,
traduzidos em uma lex mercatoria, estão plenamente
assegurados no processo negociador da ALCA. Em linhas gerais
proporcionam a eliminação de anteparos nacionais de
regulação e abrem caminho para uma reorganização
em função desses mesmos interesses. A eliminação
das articulações econômicas internas dos países
ao sul do Rio Grande, ou seja, a sua flexibilização,
será um pré-requisito indispensável para que se
estabeleçam os laços de suplementaridade entre a
economia latino-americana e a norte-americana.
Está
sendo composto um novo papel econômico para os países
latino-americanos. Um papel que está muito além da
nova divisão internacional do trabalho, como se
convencionou chamar o processo descentralização das
multinacionais em direção à periferia a partir
de 1950. Esses países são chamados a se
reterritorializar no interior de uma moldura transnacional onde
existiriam apenas como esboços em uma tela arbitrariamente
desenhada e redesenhada de acordo com as necessidades cambiantes e
momentâneas do mercado.
As
grandes corporações econômicas norte-americanas
pretendem criar um hemisfério à sua imagem e
semelhança, ou seja uma mega-rede flexível que
colecione as mais variadas habilidades e competências, os mais
distintos fatores econômicos, isto é, conjuntos de
mão-de-obra, reservas de matérias-primas, estruturas
comerciais, industriais e financeiras e mercados.
Essas
intenções estão complexamente traduzidas na
minuta do Acordo da ALCA referendada, em Quebéc em abril de
2001, sem ressalvas por 33 países americanos, exceto a
Venezuela que ousadamente reservou sua posição. Da
minuta podem se extrair cinco objetivos:
a)MERCADO
DE TRABALHO FLEXIBILIZADO E PRECARIZADO: estabeleceu-se regras
flexíveis no mercado de trabalho possibilitando a manipulação
e controle dos custos trabalhistas de acordo as necessidades
momentâneas do mercado;
b)MERCADO
FINANCEIRO DESREGULADO: permitiu-se a livre vazão dos fluxos
financeiros por meandros financeiros internos a fim de capturar
pequenas correntes de capital para engrossar os caudalosos fluxos
especulativos das mega-intituições financeiras;
c)
LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE MONOPÓLIO: liberaram-se os
mercados, ainda que residuais, através da eliminação
de barreiras comerciais e livre concorrência nas compras
governamentais, de forma a premiar os atores mais competitivos;
d)
CONTROLE DAS PATENTES E ROYALTIES: prescreveu-se uma fiscalização
rigorosa sobre patentes e royalties a fim de preservar o avanço
tecnológico e a qualidade dos produtos e
serviços;
e)
INVESTIMENTOS LIVRES DE CONTROLES NACIONAIS: determinou-se que é
plena a liberdade das redes de investir, desinvestir, comprar,
vender, remeter, transferir sem qualquer empecilho ou mecanismo
regulador de origem nacional.
Os
termos do acordo da ALCA mais parecem com os de uma procuração
por instrumento público em que a sociedade repassa,
definitivamente, plenos e totais poderes às redes privadas
oligopólicas. Em suas negociações os senhores do
capital se assenhoram também do tempo futuro e procuram impor
cláusulas de irreversibilidade, queimando possíveis
pontes de partida e naus de saída. Nada mais que o velho
estilo de negociação anglo-saxão, pragmático
e belicoso, levado à cabo a partir de fatos consumados.
A
adesão à ALCA, e aos princípios do Acordo
Multilateral de Investimentos ali embutidos, é colocada como
uma condição sine qua non para a renovação
dos acordos com o FMI, como fica patente na constrangedora situação
da Argentina. Mas essa não será a última
chantagem. Depois dos atentados do dia 11 de setembro, o imperialismo
convertido em Império do Bem não terá
pudores em neutralizar e enquadrar as resistências econômicas
em nome da segurança internacional e do combate ao terrorismo.
O antes inatingível Trade Promotion Authority (TPA), desta
feita, será concedido pelo Congresso norte-americano com
presteza e muitos votos de felicidade a George W. Bush.
Maus
augúrios indicam: a ALCA será imposta a fórceps.
O fundamentalismo ocidental e de mercado, com sua guerra santa
maniqueísta e racista, fez a si mesmo o favor de limpar e
preparar o terreno para o despotismo de seus próprios
oligopólios privados. O novo milênio começa com
sombrios sinais de totalitarismo.