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Edición N° 22 - invierno 2001

Ensaio sobre o ‘ver’ e o ‘não ver’
DO ESPETÁCULO OFUSCANTE À INQUIETANTE MINÚCIA

Por:
Heliana de Barros Conde Rodrigues
*
(Datos sobre la autora)


Não lhe custava apenas compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos deslumbravam-no cada vez. (Borges, 1995:116)

Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a ver ou a refletir (Foucault, 1984:13)
1. Introdução

A recente transmissão pela TV da cerimônia da entrega do Oscar nos põe, como é habitual a cada ano, frente ao espetáculo midiático das diferenças bem individualizadas e hierarquizadas: dentre as películas a ou b ou c, os figurinos x ou y ou z....the winner is?

No último pleito, o grande vencedor na categoria ator principal foi o neo-zelandês Russell Crowe, rapidamente alçado ao patamar de novo sex symbol hollywoodiano por sua atuação no filme Gladiator (O Gladiador) - antiga temática retomada com os mais modernos efeitos especiais de que é capaz a poderosa indústria das imagens.

Exatamente porque de forma alguma ousaria dizer-me imune às produções contemporâneas de formas de pensar, fazer e sentir veiculadas pelo cinema, a vitória de Crowe me trouxe à lembrança um outro filme, do século XX - pois já adentramos o XXI! -, onde o mesmo ator encarna diferenças outras, cheias de delicadeza e minúcia, apoiado em um roteiro cujo tema, ao menos à primeira vista, remete exatamente àquela condição que escaparia ao espetáculo ofuscante do visual: a cegueira.

Trata-se da película Proof (A prova), de nacionalidade australiana, datada de 1991 e dirigida por Jocelyn Moorhouse. No elenco, Hugo Weaving (Martin), Genevieve Picot (Celia) e, como principal ator coadjuvante, o hoje famoso Russell Crowe, no papel de Andy. Conquanto não se tenha feito mundialmente conhecido através da corrida pelo Oscar, o filme despertou atenção em alguns círculos restritos, havendo recebido a menção especial Camera D’Or em Cannes (1991) e o prêmio especial de crítica na 16a. mostra de São Paulo.

Dificilmente, contudo, alguém se interessaria de imediato por ele caso se tentasse orientar, em meio à estonteante oferta das prateleiras das locadoras de vídeo, pela sinopse da contracapa. No verso da sedutora caixinha de plástico que abriga A prova se pode ler: “Martin é uma pessoa triste que não enxerga desde o seu nascimento e não consegue confiar em ninguém (...) Agora, adulto, luta contra sua deficiência tirando fotografias, e tentando, com isso, provar que o mundo como ele imagina através de seus limitados sentidos, é o mesmo que as pessoas que enxergam vêem. Por anos, Martin aguarda alguém em que possa confiar a fim de descrever suas fotos”.(grifos nossos).

Interrompo a narrativa julgando suficientemente demonstrado pelos trechos grifados que nenhuma linguagem é inocente. Não diria que o resenhador descreve mal. Prefiro hipotetizar que performa1 um campo bastante circunscrito de visibilidade e discursividade, talvez sintetizável pela seqüência: falta (“triste”) ® invalidação (“deficiência”; “limitados sentidos”) ® compensação (“luta ... tirando fotografias”) ® morte em vida (“durante anos aguarda...”). Caso integralmente mergulhados neste tipo tão comum de dispositivo2, decerto nos poremos a assistir ao filme na expectativa de que ele confirme atributos (dos “cegos”). Ignoraremos, por conseguinte, que somente tais atributos se fazem visíveis (em lugar das relações histórico-políticas que os constituem) exatamente pelo funcionamento radicalmente material de certas maquinarias do ver e do dizer.

Sendo assim, o efeito-fenômeno sobre nossa apreensão do comportamento do personagem Martin – alguém que não vê e fotografa – arriscar-se-á a meramente confirmar uma das descrições propostas por Goffman (1982:19) quanto ao estigmatizado: este “pode (...) tentar corrigir a sua condição de maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de áreas de atividade consideradas, geralmente, como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais , a pessoas com o seu defeito. Isto é ilustrado pelo aleijado que aprende ou reaprende a nadar, montar, jogar tênis ou pilotar aviões, ou pelo cego que se torna perito em esquiar ou escalar montanhas”.

Mas...um filme sobre um fotógrafo cego? Quiçá o insólito da proposta nos conduza, alternativamente, a ignorar as preconceituosas advertências da caixinha de plástico e permita que nos deixemos tocar pelas inquietantes minúcias de Proof. Assim o fazendo, poderemos descortinar, talvez, virtuais movimentos de liberdade em uma sociedade que, por se dizer disciplinar, não se decreta disciplinada3, abrindo caminho a um ensaio ético-estético sobre o ver e o não ver.

2. Cenas: fotografia, cinema e neuro-antropologia

Nossa estratégia ensaística lançará mão de diferentes cenas de A prova, a partir das quais alguns personagens conceituais terão entrada na medida em que nos facultem acesso àquelas heterotopias aptas a proporcionar desnaturalizações, ou descaminhos, em nossos modos instituídos de pensar, agir e ser (cf. Foucault, 1981:14).

1ª Cena – Vemos Martin, um rapaz alto, louro, cerca de 30 anos, a caminhar pela rua. Ele evidentemente na vê – lá estão os indefectíveis óculos escuros e a bengala4 -, mas segue ágil, ritmado pelo instrumento: batidas cronometram o espaço percorrido. A câmera volta-se para os fundos de um restaurante onde Andy, jovem moreno de 20 e poucos anos, empilha o lixo à beira da calçada. Um gato busca restos de comida em meio aos dejetos. O som da bengala nos leva de volta a Martin, cada vez mais veloz: a paisagem é aparentemente bem conhecida. Está, no entanto, momentaneamente alterada e ele tropeça, derrubando garrafas e caixotes, ainda que rapidamente se reequilibre e prossiga célere, como que intimidado. Andy procura o gato e, pela expressão de seu olhar, supomos que o animal esteja morto. A chuva desaba.

Aos olhos de Andy – nosso contemporâneo – algo falta a Martin. Talvez ele represente um perigo para si próprio e para os demais – o gato, por exemplo! Mas ...o que falta a Martin, de que carece ele? Talvez Andy suponha, como descreve Sacks (1995:125) ao abordar a situação de Virgil – um americano de 50 anos, cego desde a mais tenra infância –, que lhe falte uma correção – dispositivo tecnológico5 ou intervenção médica – para receber a visão, como nos milagres bíblicos do Novo Testamento. Para Andy, assim como para nosso olhar excessivamente informado pelas redes de individualização-totalização da modernidade, o não-ver de Martin é uma anormalidade – desvio, obliqüidade quanto a um suposto esquadro da natureza –, cujas desconhecidas razões costumam dar ocasião a todo tipo de cadeia associativa estigmatizante – culpa, maldição, degenerescência ...?

2ª Cena – Martin entra em casa. Imediatamente, retira os óculos escuros – “coisa de rua”, “vestimenta” de olhos imorais? – e encosta a bengala a um canto. Começa a despir-se, agora das roupas. Um levíssimo ruído de batida de cigarro no cinzeiro o adverte da presença de Celia, sua governanta. Irritado, chama Bill, o cão, mas Celia já o alimentou. Aliás, ela já fez tudo, e mais quer fazer: “Posso ver as fotos para você, Martin!!”. Ele recusa, paga-lhe o dia e anuncia – repudiando novas ofertas de cuidados – que vai comer fora. A despedida de Celia faz prever incapacitações/solidões: “Não coma peixe, cuidado com as espinhas!”. Sozinho, Martin parece hesitar em meio a sua produzida solidão. A câmera mostra um grande relógio de pé a tiquetaquear e nos introduz, em flashback, a lembranças: uma bela mulher dorme enquanto dedos infantis passeiam por seu colo e cabelos ; seu corpo se move em ondas aparentemente eróticas até que desperta, assustada. Raivosa, diz ao menino louro e sardento, agora visível ao espectador: “Pare com isso, Martin! Não pode tocar as pessoas assim! Dedos não são olhos, isso é rude!”

Martin ouve levíssimos ruídos – cinzas a cair num cinzeiro; Martin-criança explora corpos, espaços, com dedos curiosos; Martin fotografa – ainda não sabemos por quê. “Não há lugar onde a natureza exponha mais abertamente seus mistérios secretos do que nos casos em que mostra vestígios de seu funcionamento fora do caminho trilhado” – dizia W. Harvey, no século XVII (apud Sacks, 1995:124). No século XX, Oliver Sacks, um neurologista, se faz antropólogo (em Marte?) para afirmar: “... quase todos os meus pacientes, quaisquer que sejam os seus problemas, buscam a vida – e não apenas a despeito de suas condições, mas por causa delas e até mesmo com sua ajuda.” (Sacks, 1995:18). Com tal afirmação faz eco ao historiador das ciências G. Canguilhem, para quem, enquanto atividade invariavelmente normativa, a vida produz uma polaridade dinâmica onde se encontram dois estados, o de saúde e o de doença. Sendo assim, a anormalidade não indica ausência (ou falta, ou carência ) de normas, mas unicamente a presença de normas diversas daquelas criadas por outros organismos da mesma espécie. Se preferirmos, a anormal, o termo anômalo, mais uma vez a normatividade vital triunfaria. Ainda segundo Canguilhem, o segundo termo remete a “irregular”, “rugoso”, e conserva um sentido puramente descritivo, sem referência valorativa: “Assim, tendo a anomalia o sentido de algo insólito, não é sinônimo de doença, do mesmo modo que o estado normal não se identifica plenamente com a saúde. O estado são admite, mais do que a conservação da vida, a mudança para novas normas.” ( cf. Lobo, 1992:115-116)

Sob tais perspectivas, a vida de Martin é normativa. No entanto, não será ela também – ou primordialmente, ou dominantemente – normalizada? Quando, das análises dos (neuro)-antropólogos (mesmo em Marte) e dos filósofos (vitalistas) das ciências, passamos às dos historiadores e sociólogos, o caráter descritivo-normativo praticamente se esfuma, dando lugar à presença de dominações mortificantes. Da frase “ver e não ver são diferentes” (como diferentes criações de normas) passamos à frase “há diferença (no interior de hierárquicas distribuições normalizantes) entre ver e não ver”. Assim, para Foucault, por exemplo, “o fundamental no discurso da medicina moderna [e nós acrescentaríamos aqui, sem hesitação, o da psicologia moderna] não seria o reconhecimento da capacidade inerente ao organismo de produção de normas, mas a imposição ativa de normas nas populações, regulada pela medicina” (cf. Birman, 1991:19). Já em uma vertente sociológica, para Becker “os grupos sociais criam o desvio ao estabelecer as regras sociais cuja infração constitui desvio e ao aplicá-las a pessoas particulares, marcando-as como outsiders (...) O desviante é aquele a quem tal marca foi aplicada com sucesso, o comportamento desviante é o comportamento assim definido por pessoas concretas”. (apud Velho, 1985:23-24)

A normatividade temporal de Martin (espaços percorridos no tempo, nos ritmos) e a normatividade tátil de Martin (mãos que se estendem sobre o corpo de Bill, sobre o corpo da mãe) parecem submergir frente aos discursos normalizadores: “Não coma peixe, Martin!”; “Posso ver suas fotos para você?”; “Não use os dedos, Martin! Dedos não são olhos!”.

Mas a aventura está apenas começando...

3ª Cena – Martin está sentado à mesa do restaurante e tenta, inutilmente, fazer com que o sirvam. Na cozinha, onde trabalha Andy, pergunta-se: “Quem vai servir o cego?” Martin pega a garrafa de vinho, já aberta, e propositalmente derruba o líquido sobre a mesa, como se não fosse capaz de reconhecer a posição do copo. A garçonete acode imediatamente e ele faz seu pedido. Andy, que assistira à cena, ri, divertido ... À saída, aguarda Martin e comunica: “Você matou o Feioso”. Conduzido ao suposto cadáver do animal, Martin lhe toca cuidadosamente o pescoço, retrucando: “Mas não está morto!”

4ª Cena – Sala de espera do veterinário, cheia de “clientes” acompanhados dos efetivos clientes – cães e gatos. Todos fitam Martin, que carrega Feioso, aparentemente morto, ao colo. Martin indaga sobre a intensidade da luz ambiente e, orientado por Andy, saca da máquina fotográfica. A parede da sala, por sinal, é recoberta por fotos, inclusive a da...rainha da Inglaterra! A cena prossegue exibindo dezenas de instantâneos, não apenas de Andy e Feioso como dos demais clientes, agora extremamente sorridentes, carregando seus “filhotes”. Todos parecem fascinados pelas imagens visuais.

Virgil, o paciente descrito por Oliver Sacks, não necessita meramente “voltar a enxergar” quando lhe removem cirurgicamente as cataratas. Todo um novo mundo de normatividade outra e de aparentemente idêntica normalização terá de ser dominado ou, ao menos, tolerado: “Quando chegamos em casa, Virgil caminhou por conta própria, sem bengala, até a porta da frente, tirou a chave do bolso, segurou a maçaneta, destrancou a porta e abriu (...) Era o seu show. Mas ele dizia que, em geral, caminhar era “assustador” e “confuso” sem o tato, (...) com suas noções incertas e instáveis sobre o espaço e a distância”.(Sacks, 1995:134); “Objetos em movimento apresentavam um problema especial, já que mudavam de aparência constantemente. Mesmo o seu cachorro6 (...) parecia tão diferente a cada momento que ele se perguntava se era de fato o mesmo cachorro” (idem:142-143).

Martin também faz seu “show” para os videntes: coloca-se estrategicamente no lugar do carente-deficiente para ser visto. Andy consegue ver a estratégia de Martin, mas morto o Feioso, que Martin sente, com os dedos, vivo! Imaginará ele que teria dificuldades em saber ser, ou não, o “mesmo Feioso” de frente ou de perfil? A que “império do olhar” (Jay, 1986) está subordinado, ao menos em parte, o fotógrafo Martin? Ao da sociedade de espetáculo (Guy Debord)? Ao da razão pós-moderna7 das imagens-simulacro (Baudrillard)? Ao da sociedade de controle (Deleuze)?8 Ou, conforme preferimos, ao da maquinaria panóptica (Foucault)? Neste caso, “nosso aprisionamento nesta máquina deve muito aos objetivos bem intencionados do iluminismo e da Revolução (...) O Iluminismo que inventou as liberdades também inventou as disciplinas” (cf. Jay, citando Foucault, 1986:192).

Os clientes (humanos, demasiado humanos) que fitam Martin - bem como se fitam, num olhar internalizado - sob a métrica totalizante-individualizante da normalização panoptista deixam-se gravar alegremente em fotos-representações-fixações (que cobrem as paredes de “rainhas” e “homens”... os novos deuses?). Mas, se é Martin aquele que fotografa, por que o dizemos fixado ao império do olhar?

5ª Cena – No carro, voltando do veterinário, Andy ri enquanto exclama: “Não acredito, um fotógrafo cego?!”. Desculpando-se, busca a expressão “politicamente correta”: “Bem, deficientes não devem ficar se lamentando ...”. Indagado acerca de quando teria começado a fotografar, Martin afirma ter ganho a câmera bem garoto, a seu próprio pedido: “Achei que me ajudaria a enxergar ...”.

6ª Cena – No restaurante, a garçonete diz a Andy: “O cego quer vê-lo”. Andy senta-se à mesa, incomodado pelo presumível olhar de censura do patrão. Martin lhe mostra suas fotos e pede que as descreva. Orienta o estilo do narrador até que este atinja uma “precisa frase de aproximadamente 10 palavras”, tal como “Andy segurando o gato fraco na sala do veterinário”. Em seguida, etiqueta a foto com uma fita em alto relevo. Espantado, Andy pergunta pelas razões de tal atitude e Martin retruca: “É a prova, a prova de que a cena é essa”. Ante a incompreensão do companheiro, acrescenta: “Eu estava lá e provavelmente sei mais do que você. Sei pelo ruído que havia duas lâmpadas florescentes e que uma estava com defeito; que o revestimento do piso estava velho e gasto, pois senti com meus pés; que havia uma mulher perfumada de sapatos altos, pois ouvi as pegadas; que havia cheiro de desinfetante e de animais doentes no ar e que você era alho e detergente. (Enquanto Martin fala, a câmera exibe “a prova” do que diz – com exceção dos cheiros ...) Finalmente, Martin conclui: “A prova é: eu senti o que você viu com seus olhos”.

7ª Cena – Voltamos às lembranças. Martin está sentado em frente à janela e a mãe lhe descreve o tempo, a grama do jardim, as flores... O menino pergunta: “O homem está lá?”. Ela responde: “Sim, perto do chafariz, juntando as folhas com o ancinho. Não ouve?” Quando Martin diz “não”, insiste: “É porque não prestou atenção!”. Martin reitera: “Não está lá!”. E a mãe: “Por que eu mentiria, Martin?” O menino, solene, retruca: “Porque pode!”

Martin atrás da janela, Martin atrás da máquina fotográfica – olhares naturais ou construídos? Para Martin, olhares apenas: as próprias coisas? No entanto, esses olhares – nunca naturais, mas ele não o pode saber, como freqüentemente, ou talvez invariavelmente, não o saibamos – se fazem acompanhar de linguagem! Martin sabe que as palavras podem não ser as coisas, mas acredita que lhes possam corresponder exatamente – mundo de ordem e medida, linguagem clara e distinta, verdade de uma civilização visual- representacional que ele supõe possa mentir, mas deva dizer a verdade, sem ambigüidade, opacidade ou equivocidade (“Andy segurando o gato fraco na sala do veterinário”). Martin está aprisionado a uma razão, mais que visual, representativo-figurativa. “Mentira” seria, para ele, a possibilidade-poder de um pintor como Magritte: abaixo da figura de um cachimbo(?), a frase “Isto não é um cachimbo”.

Em um ensaio escrito em 1968, depois transformado em um pequeno livro, Foucault (1988) faz de Magritte o criador das similitudes, em oposição às semelhanças: “Enquanto as semelhanças sempre asseguram afirmativamente a irredutível mesmidade de imagem e objeto, as similitudes, conforme Foucault as vê, “multiplicam afirmações diferentes, que dançam juntas, inclinando-se e derramando-se umas sobre as outras”. (cf. Jay, 1986:185).

Martin-fotógrafo deseja a prova da semelhança, a verdade representativa, as Luzes, a clareza. O que têm a ver com isso a vida, o amor, a amizade, a sexualidade? Que prova, afinal, será privilegiada em A prova?

8ª Cena – Martin e Bill chegam a casa. Celia diz ser seu aniversário de 30 anos – momento que “separa a menina da mulher, diferença, em suas palavras, ignorada por Martin. Os dois se empenham em agressões verbais até que Celia pede que ele a fotografe com a blusa nova que comprara. Dá então início a uma cena sedutora, fazendo com que ele toque a seda da blusa ... e seus seios. A princípio entregue ao jogo, Martin logo se retira. Celia ameaça: “Gosta de me humilhar! Posso feri-lo e um dia vou fazê-lo!”

9ª Cena – Martin mostra fotos para que Andy as descreva. Primeiro, uma folha seca. Depois, de uma mulher (Celia). Perguntado se se trata da namorada, Martin responde: “Não, Celia não tem coração. Eu a odeio!”. Andy retruca: “Se é assim, por que não a despede?” E Martin: “Ela me deseja e eu me nego; assim, não tem pena de mim e posso ter pena dela”.

Martin não pode amar, pois não pode tocar. Por vezes sabe mais do que os outros – detalhes da sala do veterinário, por exemplo –, mas avalia que os demais saibam melhor (e o melhor), pois “dedos não são olhos”. Sua normatividade tátil-auditivo-olfativa (e afetiva?) está subjugada à normalização visual. Mas, se não pode ver – como Celia faz questão de assinalar a cada instante –, pode negar-se - julga que voluntariamente - ao desejo que ela lhe oferece. À carência-captura9 no império do olhar responde com a carência-captura no reino da sexualidade.

10ª Cena – Andy leva Martin a um Cine Drive-in. Vidros fechados, narra minuciosamente o filme exibido, um terror “classe B”. No carro ao lado, alguns rapazes mal-encarados olham a cena Andy-Martin com estranheza – um visual enganador? Enquanto Andy busca algo no bar, Martin explora o ambiente: um dinossauro de plástico à frente, um gorila pendurado no retrovisor e ... o forro do volante, em tecido peludo. Este se desprende e Martin tenta, em vão, recolocá-lo, a fim de que sua curiosidade – “dedos rudes”(?) – não seja descoberta. Mesmo sentando-se no banco do motorista, as tentativas mostram-se inúteis. “Trajando” seus óculos escuros, volta-se para a janela lateral e assim permanece por bom tempo.Um dos rapazes do carro ao lado se incomoda com a suposta mirada de Martin e responde com gestos obcenos. Descobrindo uma embalagem de preservativos no porta-luvas, Martin a examina – exibe-a, sob a perspectiva do carro ao lado. Os rapazes mal-encarados e suas companheiras saem do veículo, chamam Martin de “bicha” e se põem a destruir o automóvel de Andy. Este está retornado e tenta “explicar” tudo: “É cego!”. Não o escutam, espancam-no. Trancado no carro, Martin reage buzinando a todo vapor, até que o companheiro, a custo, consegue entrar pelo lado do motorista. No colo de Martin, Andy dirige em disparada, sendo perseguido por um carro da policia. Na confusão de pés e mãos embaralhados, Andy (ou Martin?) acaba batendo no carro dos policiais. Andy exclama: “Estamos encrencados!” E Martin, em reação espetacular: “Meus olhos! Não vejo nada!”

11ª Cena – No hospital, um dos policiais, solene, aproxima-se de Andy: “Sinto muito, coitado, parece que ficou cego!”. E, para consolá-lo, estende-lhe a mão em contrita solidariedade: “Sou Brian”. Em outro consultório, a médica examina os olhos de Martin: “Mas...o senhor é cego de nascença! O que fazia dirigindo?” Responde Martin, com ar inocente: “Esqueci! ...”

12ª Cena – No carro, os dois amigos dão grandes gargalhadas – Martin pela primeira vez na vida, aparentemente! Recordando as cenas no hospital, chega a chorar de tanto rir. Andy percebe algo especial:

-Seus olhos são azuis! Por que os esconde?

-Não são olhos de verdade. De que cor são os seus?

-Verdes. Os azuis são mais bonitos ....

E, pela primeira vez, Martin convida Andy a entrar em sua casa.

O humor se introduz em Proof e, através dele, a equivocidade do visual e da linguagem. Aqueles que vêem, no Cine Drive-in, não vêem que Martin é cego; não acreditam quando Andy lhes diz esta verdade. Ao dizer a verdade – “meus olhos, estou cego!” –, Martin ilude. E ao presumivelmente mentir – dirigia porque “esquecera” ser cego –, não estaria, exatamente naquele momento, dizendo a verdade, já que pudera lançar mão estrategicamente de sua condição, em lugar de ser dominado pelas normalizações a ela associadas?

A estética se introduz em A prova – cores de olhos, beleza de olhos – e, com ela, a ética da amizade – Andy já pode entrar em casa ...

13ª Cena – Martin serve vinho e Andy lhe pergunta como sabe quando parar. “Pelo som” – contesta Martin – e se segue o diálogo:

-De quem é a foto sobre a lareira? É antiga ... Sua mãe?

-Sim. Pode descrevê-la para mim?

-Ela não se parece com você.

-Sempre me disseram que sim ...

-Estão num pequeno parque e ela o abraça. Tem dedos longos e brancos como uma estatua, 28 ou 29 anos, cabelos longos. E você ... sardas e cabelo curto!

-Eu mesmo o cortava. Ela tinha vergonha de sair comigo, desejava uma criança normal, que fizesse coisas normais! Algum dia lhe mostrarei a primeira foto que tirei, a mais importante: a foto de um jardim que minha mãe costumava descrever para mim. Eu o via através dos olhos dela e queria pegá-la mentindo, mas nunca pude. Tirando a foto seria possível.

-Por que ela mentiria?

-Para castigar-me por ser cego!

14ª Cena – Celia bisbilhota as fotos de Martin. Tenta, através de fragmentos, compor Andy visualmente, o que resulta em uma estranha figura, tipo Dr. Frankenstein! Alguém bate à porta: é o próprio Andy procurando por Martin. Celia e Andy dialogam sedutoramente.

15ª Cena – Andy chega ao parque e, a certa distância, vê que Martin está fotografando. Bill se afasta do dono. Celia, sentada silenciosamente em um banco, segura o cão pela coleira, impedindo-o de atender ao chamado de Martin, que se põe a tirar fotos em torno de si próprio. Percebendo que será fotografado, Andy tenta esconder-se atrás de uma árvore, mas é “fixado”, tendo Celia (e Bill) ao fundo.

16ª Cena – Celia chega à casa de Martin e este lhe apresenta Andy: os dois não revelam o encontro anterior. Ela trouxera – contra a vontade de Martin, que a quer longe de suas fotos – o último filme revelado. Martin pede ao amigo que descreva as imagens, pois está “perturbado com os sumiços de Bill”. Enquanto se dá o relato, Celia exibe o corpo, trocando olhares com Andy. Ao mesmo tempo, começa um diálogo entre Martin e Andy:

-O que vê?

-Nada!

-Vê Bill?

-Sim ...

-O que faz ele? Vê alguém?

-Está ... com outro cão.

-Descreva-o!

-Um filhote.

-Tem certeza?

-Claro! [Celia diz: “Deve ser uma cadela no cio”]. Sim, deve ser isso ...

No reino da verdade-olhar, Andy mente para Martin. No da sexualidade-verdade... estará seduzido por Celia? No da ética da amizade estará ... protegendo o amigo? Decerto tais mundos são planos que se interceptam, mas parecem ainda rigidamente hierarquizados para Martin. Suportará a recente ética da amizade a interferência da sexualidade-verdade?

17ª Cena – Sentado no vaso sanitário, Martin lê um livro em braille. Celia entra subitamente e o fotografa com uma Polaroid. “Eu o tenho na palma da mão. Terá de verificar tudo sempre, posso colocar esta fotografia nas suas roupas ou outro local público! Nunca saberá, pois as pessoas começarão a falar com você de um modo estranho ”. Martin lhe pergunta o que quer para devolver o instantâneo e Celia é incisiva: “Sua companhia por uma noite”.

18ª Cena – Celia e Martin estão no teatro, ela o conduz aos lugares reservados. A orquestra executa Bethoven e Martin se emociona profundamente: tira os óculos escuros e deixa-se levar, a mão apertada ao peito. Celia chora, silenciosamente, ao vê-lo assim “transportado”. Ao final do espetáculo, Martin agradece e Celia se diz feliz com o gesto. Ele lhe pede a foto, mas ela retruca:“A noite não acabou”.

19ª Cena – Casa de Celia, cheia de fotos de Martin – sobre mesas, lareira, paredes. Ela lhe serve vinho e seus frios preferidos.

-Não percebe o quanto gosto de você? Queria tanto que viesse aqui! [Abre a blusa, oferecendo-se]

-Posso me servir?

-Sou tão só como você, igual a você, e somos só eu e você agora. [Silencioso, Martin começa a comer] Temos muito em comum. Não sente que o observam?

-Toda a minha vida.

-Não sabe quando sou eu? Esta é a hora da verdade. Nunca esteve com uma mulher, não é mesmo? Toque-me onde a música o tocou.

Ele a beija, ela se deita sobre ele... Martin se refaz, diz que “não pode”, foge. Celia grita: “Ao menos feche o zíper!” Na rua, desorientado, Martin chama por táxis inexistentes. Celia chega de carro e se oferece para levá-lo a casa. Martin acede.

20ª Cena – Martin se deita, ainda vestido, chorando. Recorda a mãe a lhe acariciar os cabelos dizendo que vai morrer.

-Quando?

-Logo. Primeiro, vou ficar doente. Não quero que veja isso, vai ficar com sua avó.

-Não me quer mais! Tem vergonha!

-Acredite, Martin!

-Não acredito!

Seguem-se imagens do velório da mãe. Martin acaricia o caixão fechado e diz: “É oco!”

21ª Cena – Encontrando a porta destrancada, Andy entra na casa de Martin. Faz-se notar abrindo uma persiana que dá passagem à luz.

-Um desperdício abrir as janelas, Martin nem percebe. Está na biblioteca para cegos, vai demorar ... Pode olhar o quarto dele, eu não conto! - diz Celia.

-Não!

-Ora, não diga que não tem curiosidade de ver o quarto de um cego, os livros eróticos, sem imagens, em braille, que tem lá! Afinal, o que ele faria para se entreter? Tem mais livros que eu, que enxergo! Alguns devem ser eróticos! Ele me odeia; aliás, odeia tudo, a não ser o cão e as fotos. Mas ele te ama ... e você mentiu! Mentiu por mim!

-Não queria magoá-lo!

Celia insiste em ter sido a razão da mentira e se oferece abertamente a Andy. As luzes se apagam e ela murmura, sedutora: “Vamos nos fingir de cegos”.

Martin dizia que “Celia não tem coração”. Pode sentir que ela o deseja: ela o toca. Não pode ver que ela o tem visualmente pela casa - fotos por toda a parte -, tampouco que chora com seu choro. E ela não lhe diz isso: ele não pode ver; logo, não acreditaria em suas palavras. Quando suas lógicas de verdade-subjetivação se aproximam, dá-se o mal-entendido aprisionante.

Mas Celia tem também outra base para suas verdades: a sexualidade. E, se Martin não pode tocá-la, é porque tem “segredos” (erotismo em braille?). Ele deve tocar alguém ou alguma coisa. Sendo assim, quando suas lógicas se distanciam, dá-se novamente o mal-entendido aprisionante (alguém deve ser melhor em sexo, em leituras eróticas...).

22ª Cena – Martin aparenta tristeza, sentado em um banco do parque. Andy se aproxima e Martin inicia a conversa:

-O que faz aqui?

-Passeando ...

-Bem, já devo ter fotografado tudo neste parque.

-Há uma folha a seus pés.

-Que tamanho?

-Depois descrevo para você.

-Confio em você [Fotografa]. Há mesmo uma folha, não?

-Bem, sou irresponsável e pouco confiável. É o que todos dizem, pois estou sempre mudando de emprego. Na família, sou a “ovelha negra”. Se me visse, talvez concordasse com eles.

Martin pega a folha.

23ª Cena – Celia prepara Bill para sair com Martin e, sem que este perceba, enfia uma foto na coleira. No veterinário, após a vacinação, trava-se o diálogo.

-Bill tem uma foto na coleira!

-Eu no banheiro?

-Não, é uma foto de Bill.


Martin pega a foto e lê, com os dedos, a legenda.


-É Bill com outro cão.

-Não, com uma mulher. E com seu amigo, aquele que veio aqui com o gato.

24ª Cena – Celia e Andy estão nus no sofá. Martin entra com Bill.

-Quem está aí?

-Apenas eu – diz Celia, controlada.

Andy faz ruídos tentando vestir-se. Procura sair disfarçadamente, mas o amigo o segura pelo braço.

-Sou eu – “confirma” Andy. Devia ter avisado. Estamos apaixonados, eu e Celia.

-Apaixonados?! Fora, ambos!

Celia arrasta Andy, que parece hesitante, para a porta.

25ª Cena – Na casa de Celia, Andy vê as fotos de Martin por toda a parte. Celia traz chá, mas o rapaz afasta a xícara, levantando-se para quase fugir. Celia grita: “Ele não o perdoará, não agora!”

Martin descobre a mentira de Andy através da descrição do veterinário. A quantas confitrmações terá ainda de recorrer durante a vida? Andy se deixa levar pela verdade de Celia (“Estamos apaixonados”). Celia exibe sua verdade visual ao vidente Andy e este se sente enganado pelo corpo, pelo tato, pelo desejo. Tal como Martin, neste momento está capturado pelo visual - as fotos de Martin na casa de Celia provam que é ao amigo, e não a ele, que ela ama. Seu corpo lhe mentira?

26ª Cena – Martin está no cemitério e é conduzido pelo encarregado ao túmulo de Nancy Pamela Weber. Ajoelha-se e lê, com os dedos, a inscrição em alto relevo – nome, ano (1965). Depois, pergunta ao homem: “Enterram caixões vazios?”. Espantado, este responde com outra pergunta: “Por que o fariam?”

-Por brincadeira?!

-Brincadeira um tanto cara, não?



27ª Cena – Celia arruma a cozinha. Martin se dirige delicadamente a ela.

-Celia, sinto tê-la atormentado. Percebi que gostava de mim e tirei proveito da situação. Aqui está seu pagamento. Está despedida, já arrumei outra faxineira. [Celia reluta] Dê-me a chave de minha casa! [Celia atira a chave na pia cheia dágua]

Martin lê para Celia as referências que preparou para ela – “muito boas”, se desconsiderarmos o tom irônico da voz.

-Falta a referência a meus seios excepcionais.

-“... e tem seios excepcionais.” Quer que eu acrescente?

-Posso beijá-lo? [Ela o beija no rosto]. Bill sentirá falta de mim? Bem, quando você o chamar e ele não vier, você se lembrará!

-Adeus, Celia!

Ela sai, não sem antes colocar o cabide de pé, geralmente situado no canto, bem em frente à porta ...

28ª Cena – No restaurante, Andy fita a mesa onde geralmente se sentava Martin, agora vazia. Dirige-se à casa do amigo e o espera na porta. Este finalmente chega.

-Martin, como vai?

-Bem. Não quer entrar?

-Não, só dei uma passada. Estou bem. Vou montar um negócio de entregas, dizem que dá dinheiro.

-Andy, deveria ter tomado mais cuidado. A verdade é importante!

-Mas todo mundo mente o tempo todo sobre alguma coisa! E eu menti uma única vez, sobre Celia. Você diz a verdade, ela é sua vida! Tenha pena de nós, os outros...

-Andy, se tem tempo, peço uma última descrição.

Entram na casa. Martin tira do cofre uma antiga foto e a entrega a Andy. O espectador do filme não pode ver a imagem.

-Um homem de macacão, com um ancinho. Ao lado, um carrinho com folhas. Estão perto de um chafariz, num jardim pequeno e bem cuidado. Parece um homem velho. Velho e gentil. Bem, não sei, talvez seja impressão... Bonita foto!

-Guarde-a com você.

-Não precisa mais dela?

Martin recusa-se a receber a foto de volta. Andy sai, mas Martin o chama: “Andy, talvez eu vá ao restaurante hoje. Estará lá?”. Andy responde afirmativamente e abre um enorme sorriso.

Martin toca a inscrição do túmulo da mãe. Permitira-se igualmente ser tocado pelo humor, pela beleza, pela ironia. A vida não mais se resume à verdade e à garantia. Todos estes novos mundos descobertos, se trazem o equívoco, conduzem igualmente o afeto e a amizade.

Andy descreve a primeira foto de Martin, tão decisiva para este. Nós, espectadores videntes, não podemos vê-la; Martin tampouco. Mas ele não precisa mais dela. Nem nós que, junto com ele, pudemos fazer, através de A prova, a passagem de um paradigma iluminista-veridificativo para um paradigma ético-estético. (Guattari, 1989)

3. Conclusão

Muito mais do que para a “cegueira”, Proof volta-se para a ética e a estética.

Mais que de preconceitos, estereótipos, desvios, estigmas e normas, acaba por fazer falar a multiplicidade, a vida e a amizade.

Sendo assim, nossa conclusão só pode ser sua última cena:

O menino Martin está sentado em frente à janela. Sombras de mãos passeiam sobre seu corpo. Martin se ergue, caminha até o vidro e o toca. Chove.

Referências Bibliográficas

  • AUSTIN, J. – Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

  • BIRMAN, J. – Apresentação. Physis, vol. 1, n° 2, 1991.

  • BORGES, J. L. – Funes, o memorioso. Em Ficções. São Paulo: Globo, 1995.

  • DELEUZE, G. - Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Em Conversações. Rio de Janeiro: Editora 43, 1992.

  • FOUCAULT, M. – História da Sexualidade II:o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

  • ______________. – As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

  • ______________. – Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

  • ______________. – Le sujet et le pouvoir. Em Dits et Écrits IV. Paris: Gallimard, 1994.

  • FOLHA DE SÃO PAULO, 14/10/95.

  • GOFFMAN, E. – Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

  • GUATTARI, F. – As três ecologias. São Paulo: Papirus, 1989.

  • JAY, M. - In the empire of the gaze: Foucault and the Denigration of Vision in the Twentieth Century French Thought. Em HOY, D. C. (ed.) Foucault: a critical reader. London: Basil Backwell, 1986.

  • LOBO, L. F. – Deficiência : prevenção, diagnóstico e estigma. Em RODRIGUES, H. B. C. et al. – Grupos e instituições em análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

  • OBLIN-BRIERE, M. – La canne blanche. Paris: Privat, 1981.

  • ROLNIK, S. – Cartografia sentimental. São Paulo: Estação Liberdade, 1990.

  • VELHO, G. – O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia. Em Desvio e Divergência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

  • SACKS, O. – Um antropólogo em Marte. São Paulo: Cia. Das Letras, 1985.

NOTAS

1 O adjetivo remete à pragmática, aproveitando a distinção estabelecida por Austin (1990) entre enunciados constatativos – a princípio passíveis de serem ditos verdadeiros ou falsos – e performativos – aqueles em que o próprio dizer é um fazer, como no caso das promessas, das ordens, dos juramentos, etc. Dentro de uma perspectiva cara a Michel Foucault, poder-se-ia indagar se existe efetivamente a possibilidade de algum ato de linguagem ser puramente constatativo, ou se a performance – fazer ver, sentir, pensar, dizer – é imanente a qualquer ato de linguagem.

2 Segundo Michel Foucault, dispositivos são arranjos concretos de práticas discursivas (dizeres) e não-discursivas (fazeres) que produzem campos de visibilidade e dizibilidade, funcionando como maquinarias de verdade.

3 A disciplina, para Foucault, é do real social contemporâneo – sociedade disciplinar –, mas não totaliza um ou o real como sociedade disciplinada. Lembremos que, para este filósofo e historiador, os exercícios de poder constituem ações sobre as ações de outrem, o que pressupõe a presença – embora sempre circunstanciada - da liberdade (às vezes chamada, de forma um tanto equívoca, resistência). O tema está bem desenvolvido em Foucault, 1994.

4 Acerca da invenção, na França (1931), da bengala branca como marca identificatória dos que não vêem ou enxergam mal, pode-se consultar OBLIN-BRIERE, 1981.

5 “Chip pode fazer cego voltar a ver” era manchete da Folha de São Paulo já em 1995.

6 A epígrafe de Funes, o memorioso, de J.L.Borges, utilizada na abertura deste trabalho, nos foi sugerida pelo próprio trabalho de Sacks, a partir do relato de Virgil sobre suas peripécias visuais.

7 O pós-modernismo poderia ser caracterizado com alguma nitidez através do seguinte diálogo.

“– Seus filhos são lindos!”

– E olhe que você ainda não os viu em fotografia!”.

8 Em que pese pareça extremamente instigante, a provocação de Deleuze (1992: 219-226), afirmando serem as sociedades atuais não mais disciplinares - marcadas pelo confinamento -, mas de controle - poderes ultra-rápidos exercidos ao ar livre -, julgamos que tem por conseqüência um obscurecimento das concepções de Foucault: a disciplina jamais foi pensada, segundo este último, como estando restrita a instituições fechadas como a escola, a fábrica, o hospital, a prisão, etc.

9 Síndrome de carência-captura: expressão cunhada por Suely Rolnik (1990) para caracterizar o modo hegemônico de produção de subjetividade no mundo capitalístico. Para engendrar sujeitos carentes criam-se totalizações – verdades, ideais, etc. – em relação às quais estes se apreendam como faltantes. Tais totalizações podem ser ofertadas infinitamente e variar do mesmo modo.



* Datos sobre la autora:
* Heliana de Barros Conde Rodrigues
Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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