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Edición N° 39 - octubre 2005

A proteção social como "necessidade mínima", o avanço dos preceitos (neo)liberais e a desconstrução da Seguridade Social brasileira na década de 1990

Por:
Larissa Dahmer Pereira
* (Datos sobre la autora)


Introdução

O presente ensaio apresenta um panorama do tratamento dispensado às políticas de Seguridade Social na década de 1990, ao longo dos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, o que consideramos fundamental para a compreensão acerca dos limites e possibilidades de atuação profissional do Serviço Social nas políticas de Seguridade Social. Para tanto, é necessário registrar a característica do sistema de proteção social no Brasil desde a passagem do modelo agro-exportador para o de um país industrial nos anos 1930: aquele se caracterizou pela seletividade e o moralismo, pois eram cidadãos somente os que se encontravam em ocupações reconhecidas e definidas em lei, inseridos no processo produtivo, o que excluía a maior parte da população. Tal padrão ficou conhecido como o de “cidadania regulada” (Santos, 1987), cujo tripé basal caracterizou-se pela regulamentação das profissões, pela carteira de trabalho e pelo sindicato público, e vigorou até o final dos anos 1980.

O período transcorrido de 1985 até as primeiras eleições diretas para presidente da República, em 1989, após 25 anos de regime militar, constituiu-se de grandes mobilizações populares e foi fundamental para o alargamento e a mudança do padrão de proteção social brasileiro até então vigente.

Com o processo de elaboração da nova Carta Constitucional, o capítulo referente à Ordem Social inscreveu importantes avanços na concepção de proteção social brasileira. Neste, a Seguridade Social - considerada historicamente como o “núcleo duro” da proteção social em países com avançado grau de proteção social, como os escandinavos – é compreendida como um conjunto integrado de ações, sendo um dever do Estado e direito do cidadão. O seu “espírito geral” é o de uma proteção universal, democrática, distributiva e não-estigmatizadora e é compreendida pelas áreas da Saúde, Assistência e Previdência (Vianna, 1998).

No entanto, é necessário alertar que a Seguridade Social instituída pela Constituição Federal de 1988, apesar de inovadora e de intencionar a construção de um padrão amplo de direitos sociais, caracterizou-se como um sistema híbrido, que conjuga direitos derivados do trabalho (Previdência), direitos de caráter universal (Saúde) e direitos seletivos (Assistência). Além disso, os princípios constitucionais como universalidade na cobertura, uniformidade e equivalência dos benefícios, seletividade e distributividade nos benefícios, irredutibilidade do valor dos benefícios, equidade no custeio, diversidade do financiamento e caráter democrático e descentralizado da administração se aplicam diferenciadamente a cada uma das políticas de Seguridade Social e não instituíram um sistema homogêneo, integrado e articulado (Boschetti, 2001).

Apesar dos limites relativos à nova Carta Constitucional, resultante da correlação de forças existente entre os interesses dos diferentes segmentos e classes sociais no processo Constituinte, consideramos que o padrão de “cidadania regulada” vigente desde os anos 1930 poderia ser transformado significativamente com base nos preceitos constitucionais de 1988, o que foi barrado já nas primeiras eleições livres e diretas após o regime ditatorial, com a disputa entre dois projetos societários radicalmente diferentes: o da democracia de massas (com ampla participação social) e o de democracia restrita (que diminui direitos sociais e políticos), com a vitória deste último. A derrocada do projeto de democracia de massas significou o recuo dos avanços políticos e sociais conquistados na década de 1980 e uma regressão no direcionamento dado ao padrão de proteção social brasileiro (Bravo e Matos, 2001).


A década de 1990: a proteção social como “necessidade mínima”, o avanço do neoliberalismo e a desconstrução da Seguridade Social brasileira

O governo Collor, ao assumir o poder, tratou de desconstruir os princípios universalizantes, distributivos e não-estigmatizadores da Seguridade Social, inscritos na Constituição Federal de 1988. Com uma agenda liberalizante, de integração subordinada da economia nacional à internacional e, de acordo com o Consenso de Washington (1989), privatizante, desregulamentadora do mercado de trabalho e dos direitos trabalhistas e sociais até então conquistados, concebeu a política social de uma forma minimalista e com um viés estritamente (neo)liberal.

Segundo Soares (2001), o período Collor significou o desmonte do padrão anterior sem a substituição de um novo padrão de proteção social. A política social foi compreendida através de uma visão seletiva, liberal e focal das obrigações sociais do Estado e o seu objetivo primordial foi o combate à inflação. As áreas da saúde, assistência e previdência são distribuídas em três ministérios diferentes, em oposição ao conceito de Seguridade Social, mas os recursos foram unificados e subordinados à área econômica.

O governo enviou ao Congresso uma proposta de Reforma Constitucional, que teve como pilares a abertura econômica, a privatização, a internacionalização da economia e, quanto às políticas sociais, a sua privatização, focalização e seletividade. Como não conseguiu ampla base hegemônica para a realização da reforma pretendida, passou a direcionar suas ações através de emendas e vetos presidenciais (Soares, 2001). Esse direcionamento foi dado às políticas de Seguridade Social em seu conjunto. Mas, dada as especificidades de cada uma delas, o impacto neoliberal foi mais ou menos desastroso.

A área de Assistência Social, a partir de 1990, foi sistematicamente boicotada pelo governo Collor, através do veto integral ao texto da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), regulamentadora dos preceitos constitucionais e que, se implementada, traria uma concepção e uma ação pública radicalmente diferente do tradicional assistencialismo brasileiro. Na LOAS, a assistência é concebida como uma política, isto é, um processo complexo que envolve as dimensões racional (a assistência social informada por estudos, pesquisas, diagnósticos e permanente avaliação quanto a resultados e impactos), ética (com o combate às iniquidades sociais como uma responsabilidade moral a que nenhum governo pode abdicar) e cívica (a política de assistência social deve ter vinculação com os direitos de cidadania). E, além de ser uma política deve constituir-se como pública: uma ação pública que compromete e compete a todos; o Estado – na sua execução – e a sociedade, no exercício do controle democrático (Pereira, 2000).

A assistência social, na direção da LOAS, tem uma dimensão distributiva (em contraposição à dimensão contributiva da previdência). Volta-se para a pobreza absoluta, mas também para a pobreza relativa e/ou para a desigualdade social e rompe com a visão contratualista de proteção social, baseada na ética capitalista do trabalho (Pereira, 2000; Boschetti, 2001).

Se, na área de assistência social o governo Collor, na prática, anulou os preceitos constitucionais, pois não os regulamentou, para que pudessem ser transformados em ações concretas através de políticas públicas, na área da saúde o processo foi diferenciado por peculiaridades concernentes à área.

Na área da saúde, como apontamos, já havia um projeto – o de Reforma Sanitária - gestado ao longo da década de 1980 e mais amadurecido (mais fortalecido do que a área de assistência social). Este tem como uma de suas estratégias a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), com princípios como a democratização do Estado, a universalização, a constituição de uma esfera pública com controle social, a descentralização, a democratização do acesso à qualidade dos serviços e a premissa básica da saúde como direitos de todos e dever do Estado. Defende a compreensão da saúde para além do processo de adoecimento, mas a percepção desta enquanto resultado das condições gerais de vida (lazer, educação, saneamento básico, transporte, habitação) (Bravo e Matos, 2001).

No entanto, ao iniciar-se o governo Collor, efetuou-se um boicote sistemático à implantação do SUS - através de emendas constitucionais - e a redução de verbas para a área, o que configurou um retrocesso político em relação ao SUDS (Bravo e Matos; 2001; Soares, 2001).

Soares (2001) aponta que o processo de descentralização com gestão colegiada iniciado nos anos 1980 foi revertido para uma postura recentralizadora do controle de recursos por parte do governo federal. Os recursos eram repassados diretamente às prefeituras, reforçando antigas relações clientelistas e retirando dos estados o seu poder de regulação. A autora, ao estudar o gasto público federal em saúde e realizar uma análise comparativa entre os anos de 1989 e 1993, mostra uma forte redução, sendo que o gasto municipal aumentou a partir de 1991, como um movimento compensatório à redução dos gastos no nível federal.

Cabe ressaltar que a redução do gasto federal resultou em sucateamento da rede, visto a insuficiente capacidade de atendimento das redes municipais. Havia, ainda, uma baixa capacidade instalada de leitos públicos hospitalares, o efetivo sucateamento da rede e a predominância dos leitos privados no que se refere à internação hospitalar (Soares, 2001).

A autora, ao analisar os gastos sociais, ressalta que o financiamento da Seguridade Social previsto na Constituição Federal de 1988 é uma “peça de ficção” e a especialização das fontes (contribuições para a Previdência; FINSOCIAL para a Saúde e a contribuição sobre os lucros, para a Assistência Social) faz com que a Seguridade Social fique sujeita às oscilações de economia e fragmentada em seu orçamento (Soares, 2001).

Outra autora (Barros, 2004), em análise sobre o orçamento da Saúde durante o governo Collor e também os de Fernando Henrique Cardoso, afirma que a primeira metade da década de 1990 foi marcada pelo desfinanciamento setorial com grandes oscilações no volume dos recursos destinados ao setor e com intensa irregularidade no fluxo financeiro durante a execução do orçamento anual. O auge da crise ocorreu em 1993, ainda no governo Collor, quando o ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso e Antônio Brito, ministro da Previdência Social, pactuaram um “acordo informal” que permitia enfrentar o déficit previ­denciário às custas do financiamento da saúde, mediante suspensão do repasse ao Ministério da Saúde (MS) dos recursos originários da contribuição sobre a folha de salários previstos no Orçamento, que correspondia a 31% do orçamento do MS. Os gastos com saúde foram comprimidos e financiados, por meio de empréstimos to­mados junto ao Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT, cujos pagamentos oneraram expressivamente o orçamento do MS nos anos seguintes.

Como conseqüência - pois os recursos federais representavam, à época, mais de 60% do gasto público com saúde - a crise resultou em sucateamento da rede pública, perda de qualidade da atenção ofertada, enormes filas de espera para atendimento em saúde, sub-remuneração dos profissionais de saúde e ausência de insumos e medicamentos para assegurar atendimentos resolutivos, dentre outros. Muitos problemas que o sistema público de saúde enfrenta ainda hoje estão associados a esses fatores (Barros, 2004).

Ao mesmo tempo, a autora (Barros, 2004) aponta a forte expansão, no período, dos planos e seguros de saúde, para o qual migraram em massa, mediante subsídio dos empregadores, os antigos beneficiários da atenção ofertada pelo sistema previdenciário: os trabalhadores do mercado formal, únicos portadores, até 1988, do direito à assistência pública à saúde.

A crise só não alcançou proporções mais graves devido ao “freio” de algumas mudanças institucionais decorrentes da implantação do Sistema Único de Saúde. O processo de descentralização, iniciado em 1993, com a transferência de responsabilidades para os municípios foi um desses “freios”. Barros (2004) ressalta que as dificuldades de acesso e a baixa qualidade da atenção ofertada pelo SUS decorrem, em grande parte, da convergência dos efeitos de um modelo de atenção pré-existente, excludente e centrado na assistência médico-hospitalar – o modelo pré-Constituição Federal de 1988 -, incapaz de prover ações de promoção da saúde e prevenção das doenças e de promover investimentos para a expansão da rede. A autora (Barros, 2004) lembra que essa rede está concentrada nas regiões de maior dinamismo econômico, uma vez que foi constituída para atender aos beneficiários da previdência social integrados ao mercado formal de trabalho, no padrão de “cidadania regulada” (Santos, 1987).

No contexto de crise econômica, as receitas não par­tilhadas no orçamento da União passaram a ter um importante papel na estratégia de ajuste fiscal. Tal estra­tégia, de ampliar a arrecadação federal, foi amplamente utilizada na década de 1990. A arrecadação direta do Governo Federal, que correspondia, em 1988, a 15,8% do Produto Interno Bruto (PIB), alcançou, em 2000, 22,6% do PIB. Entre 1995 e 2001, a relação Gasto Social Federal/PIB cresceu 13,5% em termos reais, enquanto a de Contribuições Sociais/PIB cresceu cerca de 33%. As contribuições sociais correspondiam, em 1995, a 45% das receitas correntes da União, e em 2002 já superavam 56% (IPEA in Barros, 2004).

Tal ampliação da arrecadação não assegurou recursos para a saúde, dado que a Constituição Federal de 1988 (CF-1988) não especificou uma fonte exclusiva para o setor saúde nem definiu percentuais de vinculação que assegurassem a transferência de recursos proporcionais à arrecadação das contribuições, embora o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF-1988 tivesse estabelecido um parâmetro ao determinar que até a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), 30 % do orçamento da Seguridade Social deveria ser destinado ao setor saúde. Esse dispositivo não teve eficácia e a Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO - não assegurou o percentual de 30% a partir de 1994 (Barros, 2004).

Em 1996, foi criada – a título provisório, mas que se mantém até os dias atuais - a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), cuja arrecadação, até o ano de 1998, destinava-se exclusivamente à saúde. Quando foi prorrogada, em 1999, houve aumento da alíquota de contribuição, que passou de 0,20% para 0,38%. Foi mantida para a saúde a alíquota de 0,20%, e o acréscimo de 0,18% foi destinado à previdência social (idem).

Em 1995 e 1996, as principais fontes de financiamento eram a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido de Pessoas Jurídicas (CSLL) e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que respondiam, em 1995, por 20,2% e 49,2%, respectivamente, do gasto do Ministério da Saúde. A partir de 1997, com a entrada dos recursos da CPMF, a participação dessas fontes caiu significativamente, representando, já em 1999, apenas 13% (CSLL) e 27% (Cofins). Os montantes originários da Cofins alcançavam cerca de 11 bilhões, em 1995, e em 1999 não atingiam 6 bilhões; a CSLL aportava 4,5 bilhões, em 1995, e caiu para apenas 2,9 bilhões em 1997, evidenciando um movimento de substituição das fontes. A CPMF, que deveria significar acréscimo de recursos para a saúde, propiciou então a liberação dos recursos das demais fontes para outros gastos (ibidem).

Em 1999, no segundo governo FHC, foi aprovada a Emenda Constitucional nº29/2000 (EC/29). Através dessa, as receitas dos estados (12%) e dos municípios (15%) foram vinculadas ao setor saúde, o que não foi adotado para a União, que teve apenas a obrigatoriedade de acrescer, em 2000, 5% em relação ao montante empenhado em 1999 e, a partir de 2001 até 2004, corrigir a dotação pela variação nominal do PIB, independentemente do comportamento da arrecadação federal. Com isso, o gasto com saúde, que em 1995 correspondia a 14,5% da arrecadação federal, caiu, em 2001 para 11,4% dessa. Apesar dessa limitação, a EC/29 pode ser considerada um avanço no que diz respeito à regularização de recursos para o setor saúde (Barros, 2004).

Em análise sobre a evolução dos gastos com saúde durante os governos Fernando Henrique Cardoso, Barros (2004) informa que, no primeiro ano de governo, o orçamento do Ministério da Saúde foi de 22,6 bilhões. Caiu para 18,3 bilhões em 1997, chegou a 25,6 bilhões em 2001 (valores reais 2002) e, ao final do período do governo, em 2002, correspondeu a 25,4 bilhões. O gasto federal com a saúde correspondeu a cerca de quarenta centavos/dia por habitante.

A autora (Barros, 2004) observa que o governo não compartilhava explicitamente do princípio doutrinário da universalidade do direito à saúde e preconizava a política focalizada da receita neoliberal. E cita declaração do presidente FHC, diante do Conselho Nacional de Saúde, durante a 62ª Reunião Ordinária, em 5 de fevereiro de 1997:

(...) no meu modo de entender, é prioritária a reconstituição de um sistema público de saúde, dos hospitais universitários, dos hospitais públicos e das Santas Casas, em que há tanta dificuldade muitas vezes, para que nós possamos efetivamente ter uma estrutura que garanta o atendimento àqueles que não têm recursos. Os que têm recursos crescentemente usarão outros mecanismos e os seguros de saúde, mecanismos existentes em todas as sociedades e que deverão, por conseqüência, diminuir o peso sobre o SUS. (...) Eu acho que os que dispõem de recursos não têm por que apelar para a gratuidade da saúde, se eles têm condições de pagar um seguro.

Barros (2004) observa que, apesar da postura neoliberal, algumas mudanças relevantes se consolidaram, no período de 1995 a 2002, no que se refere à composição do gasto federal com saúde. Dentre elas, a ampliação do uso de mecanismos de transferência fundo a fundo para estados e municípios e o maior peso atribuído aos dispêndios com a atenção básica.

No entanto, apesar da ampliação de serviços de saúde de atenção básica, os municípios ficaram “amarrados”, para o repasse dos recursos, aos modelos dos programas de atenção básica (Programa Saúde da Família – PSF – e PACS – Programa de Agentes Comunitários) pré-definidos pelo Ministério da Saúde, o que significou um processo de recentralização e reduziu o poder decisório de estados e municípios quanto à alocação de recursos (Barros, 2004).

Quanto aos serviços de média e alta complexidade (os de gastos mais vultosos do setor), com a crise desencadeada a partir de 1993 e a redução de recursos para o setor saúde com o consequente sucateamento da rede, a tabela de remuneração dos serviços, em 1998, estava defasada em cerca de 80% em relação a 1993. Essa situação provocou o descredenciamento da rede pública de saúde, por parte das entidades privadas e filantrópicas de saúde. Ao mesmo tempo, os serviços privados de saúde buscaram novos adeptos dos planos de saúde e criaram fundações privadas de saúde associadas a estabelecimentos públicos, o que aprofundou o fosso entre os que podem pagar e aqueles “não-aptos” – financeiramente - ao atendimento de saúde privada (idem).

A autora (ibidem), ao realizar um balanço do financiamento do setor saúde nos governos FHC, ressalta que a política de saúde, por ter um marco institucional e legal bastante claro, esteve menos vulnerável, embora não imune, aos ataques neoliberais. Assim, o arranjo institucional do sistema, de caráter descentralizado e com mecanismos de partici­pação social, produziu reações contrárias às tentativas de desmonte da saúde pública. Porém, algumas das estratégias adotadas na implementação da política tiveram impacto bastante negativo sobre a consolidação do SUS, como as tercei­rizações, a recentralização de processos decisórios, a fragmentação das transferências a estados e municípios, dentre outras.

O mais grave, no que se refere ao gasto com saúde, localiza-se no financiamento do sistema, isto é, na insuficiência dos montantes alocados para assegurar o direito à saúde universal. Dados da Organiza­ção Mundial da Saúde mostram que o gasto público per capita do Brasil, em 1998 (US$ 154), correspondia a 42% do observado na Argentina (US$ 366), a 12% do realizado pelo Canadá (US$ 1.296) e a 8,5% do verificado nos EUA (US$ 1.817).

Esses dados apontam para a necessidade de trans­cender a esfera setorial, visto que a retenção de recursos ocorre em todas as áreas sociais, determinada pela lógica que rege a política macroeconômica, segundo a qual a prioridade absoluta está colocada na dimensão financeira e no pagamento da dívida.

Quanto à Previdência, desde 1992 instalou-se uma comissão, na Câmara dos Deputados, para a elaboração da Reforma da Previdência, com o envio de propostas de trabalhadores (representados pela Central Única dos Trabalhadores - CUT - e Força Sindical) e capitalistas (representados pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - FIESP, Federação Brasileira de Associações de Bancos - FEBRABAN, Instituto Liberal) com inúmeros ataques (por parte dos setores industrial, bancário e financeiro) à concepção de Previdência Social pública, de repartição e baseada numa concepção de solidariedade de classes (Mota, 1995).

Com a Constituição Federal de 1988, houve a extensão de benefícios e a equalização de valores dos mesmos, entre as áreas urbana e rural. Foram realizadas inúmeras críticas a tal concepção de Previdência e desde a Constituição de 1988 a existência do debate referente à “Reforma da Previdência” é tratada como um ponto chave de Seguridade Social, sobrepondo-se às áreas da Saúde e da Assistência.

Vianna (1998) aponta que a Seguridade Social, no Governo Collor e principalmente no Governo Fernando Henrique Cardoso, foi reduzida à discussão da Reforma da Previdência. De um lado, a Saúde foi atacada sem serem realizadas mudanças no texto constitucional com a deliberada redução de gastos no setor público, o que reforçou o sistema dual já existente na área de Saúde: para aqueles detentores de capacidade aquisitiva, a rede privada - na forma dos seguros de saúde que se multiplicaram na década de 1990 (com cerca de 40 milhões de usuários) -; já para os pobres, o atendimento na rede de saúde pública, deteriorado e com profissionais de saúde desgastados quanto às péssimas condições de trabalho. Boschetti (2001), na mesma direção, afirma que a regulamentação dos planos de saúde, em franca expansão - associada à baixa qualidade do atendimento da saúde pública – esvazia o SUS e favorece os empresários do setor.

Apesar da estratégia (uma das) de descentralização com gestão colegiada (isto é, o controle social – através dos Conselhos de Saúde, cerca de 4 mil em todo Brasil) – para o fortalecimento da Saúde Pública (Bravo e Matos, 2001) os seus usuários, efetivamente, não se constituem como um grupo de pressão, sem efetiva condição de vocalização de suas demandas (Vianna, 1998 e 2001).

Quanto à área de Assistência Social, apesar da regulamentação da LOAS, em 1993, as ações governamentais voltadas para a política de assistência social foram de extinção de programas, de redução de pessoas beneficiadas, de concentração de recursos no Benefício de Prestação Continuada (BPC) – único benefício constitucionalmente assegurado -, de focalização das ações em famílias em situação de extrema pobreza, de redução de recursos nas ações e serviços continuados, e de fortalecimento de programas de transferência de renda, na modalidade de bolsas (Boschetti, 2001).

A Assistência Social, como já mencionamos, foi – apesar do avanço da promulgação da LOAS, em 1993, no governo Itamar – reduzida a assistencialismo, caridade pública, com forte instabilidade institucional. Já no início do Governo Fernando Henrique Cardoso, com a criação do Programa Comunidade Solidária cria-se um paralelismo de ação na área de Assistência Social, com o esvaziamento do Conselho Nacional de Assistência Social (que tem como função básica, a de controle social, além da formulação e a fiscalização da execução da Política Nacional de Assistência Social).

O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), conforme a LOAS, tem um papel preponderante no processo de formulação da política de Assistência Social e no controle de sua execução. Boschetti (2001) aponta que o conhecimento acerca de sua correlação de forças é imprescindível para conhecer a relação estabelecida entre Estado e sociedade civil e as possibilidades de avanço ou recuo da política de assistência social. O Conselho é considerado aqui um espaço contraditório, de articulação de forças e interesses.

O CNAS é um espaço deliberativo com representação paritária de representantes do governo, dos usuários, dos prestadores de serviços e trabalhadores da área de Assistência Social. Os representantes governamentais são indicados pelo governo, sendo os representantes dos seguintes Minsitérios: da Previdência Social, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, do Trabalho e Emprego, da Fazenda, da Saúde, da Educação, do Planejamento, Orçamento e Gestão e, ainda, a representação dos estados e dos municípios.

Os representantes da sociedade civil são eleitos em foro próprio sob a fiscalização do Ministério Público e dividem-se entre entidades/organizações de Assistência Social, representantes de usuários ou organizações de usuários e representantes dos trabalhadores da área de Assistência Social.

Boschetti (2001), em pesquisa realizada sobre a composição do CNAS durante o governo Fernando Henrique Cardoso, entre 1994 e 2002, observa que as duas primeiras gestões (1994-1996 e 1996-1998) tiveram um caráter mais combativo em relação à gestão 1998-2000. Por duas razões: (i) a representação da sociedade civil, eleita para a primeira gestão e reconduzida na segunda, tinha um perfil mais crítico e uma maior autonomia em relação ao governo. (ii) com sujeitos mais críticos e combativos, o governo passou a investir mais no CNAS, por perceber aquele espaço enquanto um espaço de disputa.

Já na gestão de 1998/2000, a sociedade civil no CNAS tornou-se menos combativa, ao mesmo tempo em que o governo adotou uma postura mais restritiva em relação aos direitos sociais, com o acirramento do ajuste fiscal. A composição política dos membros mudou, com entidades mais corporativas e a diminuição da representação de entidades de defesa de direitos. Na gestão 2000/2002, as entidades dos usuários continuaram bastante corporativas. Já nas entidades representativas dos trabalhadores o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e a Confederação Nacional de Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS) reforçaram um campo mais progressista, em choque com a Força Sindical. Enquanto nas entidades assistenciais permaneceram duas prestadoras de serviços, embora a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tenha uma história de lutas no campo progressista.

Nesse quadro de fragilização da esfera do controle social por parte da sociedade civil, houve a possibilidade do retorno de uma concepção de assistência social fortalecedora da relação clientelista, que não estabelece critérios transparentes na área e compreende a assistência social como uma função do “Terceiro Setor”, com a transferência de recursos públicos para entidades filantrópicas e/ou ONGs, e não como uma política pública (Pereira, 2000; Raichelis, 2000; Montaño, 2002).

Montaño (2000) aponta a funcionalidade do discurso e da defesa do “Terceiro Setor” durante os anos de 1990, período de contra-reforma do Estado, cujo objetivo foi o ataque sistemático às conquistas sociais inscritas na Constituição Federal de 1988 (Behring, 2003).

Segundo esse discurso, haveria o “Primeiro Setor” (o Estado), o “Segundo Setor” (o Mercado) e o “Terceiro Setor” (composto por organizações privadas, porém de caráter público e com “fins sociais”). Este último seria composto pela infinidade de organizações sociais (Organizações Não-Governamentais, fundações, entidades sem fins lucrativos em geral). O Estado se limitaria a exercer funções estratégicas como segurança, o Mercado seria a esfera do lucro e da competição, enquanto ao “Terceiro Setor” restaria a “responsabilidade social” por áreas como as de saúde e de educação (Montaño, 2000).

Tal conceito – o de “Terceiro Setor” – é extremamente ideologizante, visto que (i) compartimenta a sociedade de uma forma aclassista e vela o fundamento gerador da “questão social”, isto é, a divisão da sociedade em classes; (ii) parte do pressuposto que o Estado deve se limitar ao mínimo, pois ele não seria “naturalmente” competente para exercer funções de cunho social, e, (iii) por fim, é extremamente funcional ao capital, pois abre novos espaços – os relativos às políticas sociais - de capitalização que antes eram preenchidos pela ação estatal (Montaño, 2000; Behring, 2003).

No entanto, apesar da investida neoliberal durante toda a década de 1990 e o esvaziamento político do Conselho Nacional de Assistência Social, a partir de meados dos anos 1990, outras frentes de luta em defesa da Assistência Social foram articuladas, como o Fórum Nacional de Assistência Social e a Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Social.

 O Fórum Nacional de Assistência - criado em 1999 a partir da articulação de diversas entidades e organizações da sociedade civil - é um espaço de articulação e fortalecimento da sociedade civil organizada no exercício do controle social e da formulação de propostas alternativas, para a consolidação da política de assistência social e sua pactuação na instância deliberativa do Conselho Nacional de Assistência Social (ABONG, 2004).

Outra frente de luta por uma política pública de assistência social é a Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Social, criada em 1999, e, a partir desse período, a Assistência Social ganhou uma maior visibilidade no Legislativo.

Com o ataque frontal à Saúde – a única área da Seguridade Social que adquiriu o status de universalidade pelo texto constitucional - e com a redução da concepção de Assistência Social rumo à refilantropização da sociedade civil - restou a área da Previdência, que se tornou o foco privilegiado do projeto reformista conservador durante os anos de 1990.

A área agrega um enorme volume de recursos, somados aos interesses de 18 milhões de pessoas (que recebem aposentadorias e pensões) – o que torna este um campo “minado” para se entrar, pois “toca” em interesses político-eleitorais – além dos interesses de realização de um sistema dual de Previdência. Tal dualização – com o regime de “Previdência Complementar” - significa a privatização da área e um campo vasto e lucrativo para a acumulação de capitais (de forte interesse para os conhecidos fundos de pensão) (Soares, 2001; Vianna, 1998; Mota, 1995).

O debate em torno da Previdência gira em torno de suas possibilidades atuariais, mas, segundo Dain (que analisa o financiamento da seguridade social, in Soares, 2001 e Vianna, 1998), não há problemas de financiamento da Seguridade Social, pois as contribuições sociais previstas na Constituição Federal de 1988 são suficientes para o seu suprimento. Contudo, tais contribuições foram, ao longo da década de 1990, utilizadas com outros objetivos, como, principalmente, o pagamento dos “serviços da dívida” (ANFIP, 1998).

Vianna (2001) afirma a existência e a produção de mitos relativos à Seguridade Social, na retórica neoliberal, voltados fundamentalmente para a Previdência. São eles: o mito naturalista, que naturaliza os processos sociais em curso (a globalização, o processo de reestruturação produtiva, a desnacionalização do capital), sem analisá-los como um direcionamento político e como uma das possibilidades históricas (ou seja, existem outras possibilidades de ordem social; e logicamente, de construção de sistemas de seguridade social/proteção social).

A autora (2001) afirma que o processo de desmonte da Seguridade Social não foi generalizado e muito menos homogêneo entre os países, que promoveram diferentes ações para o processo de crise desencadeado a partir da década de 1970. Assim, salienta o caráter político da Seguridade Social, que depende da ação intencional dos homens.

Decorrente do mito naturalista há o mito tecnicista, que despolitiza a Seguridade Social e tecnifica os interesses públicos, tratando-os de forma burocrática. Apresentar a Seguridade Social restritamente como de natureza técnica e baseada em cálculos financeiros, significa esvaziá-la de seu conteúdo político e inclusive como política social, visto que a subordina a preceitos financeiros e, logo, à lógica neoliberal e às necessidades de supercapitalização do capitalismo tardio (Vianna, 2001; Behring, 1998; Mota, 1995).

O 3º mito é o maniqueísta, que estabelece uma relação dualizada e antagônica entre sistemas públicos e privados e entre a repartição e a capitalização (no que diz respeito à Previdência, fundamentalmente). Vianna (2001) cita experiências nacionais diversas e que necessariamente não é preciso o estabelecimento de tal antagonismo, pois existem possibilidades da realização de um “mix”. A autora busca, com tal problematização, salientar, mais uma vez, o caráter político da Seguridade Social e, logo, de necessidade de sua construção a partir das relações e interesses de grupos e classes sociais.

Vianna (2001), por fim, avalia que, no governo Fernando Henrique Cardoso, a Previdência virou seguro e ganhou uma imagem catastrófica, com uma deliberada opção maniqueísta pela previdência privada, em clara consonância com a cartilha neoliberal ensinada aos países periféricos, pelos organismos internacionais, após o Consenso de Washington. Nesta direção, o governo Fernando Henrique Cardoso, além de apresentar um “bom comportamento” ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ofereceu grandes incentivos à indústria da Previdência e desmantelou o aparato administrativo público, culpabilizando o funcionalismo público pela falta de qualidade/ineficácia da área pública e pelo déficit na Previdência.

No balanço realizado pela autora, o governo Fernando Henrique Cardoso “matou” a concepção universalista, democrática, distributiva e não estigmatizadora, inscrita na Constituição de 1988, sem fazer barulho, realizando um “silencioso desmonte” da Seguridade Social, através da construção de mitos, da desmoralização e do esvaziamento do conteúdo de seus princípios, além da ótica setorialista com que tratou a Seguridade Social, desmontando a integração e a transversalidade das políticas de Assistência, Previdência e Saúde (Vianna, 1998 e 2001).

Outra autora que realiza uma interessante análise sobre o desmonte da Seguridade Social é Mota (1995). Esta afirma que, em meio à crise de hegemonia burguesa desencadeada a partir da década de 1970, foi necessária a retomada da hegemonia, da direção do consenso, através da produção de uma cultura da crise.

Tal cultura da crise parte da idéia de que a crise - de produção/reprodução do modo de produção capitalista - afeta, indiferenciadamente, a todos, numa perspectiva aclassista. É preciso, então, um esforço de todos para a superação da crise, o que implica no consenso ativo dos trabalhadores e na sua participação no processo de reestruturação produtiva e na aquiescência dos mesmos quanto à redução de gastos sociais e perda de direitos trabalhistas e sociais. Assim, estabelece-se a culpabilização e a individualização da crise, com o ataque às organizações coletivas dos trabalhadores e às históricas lutas destes por direitos sociais e trabalhistas (Mota, 1995).

A cultura da crise é estratégia fundamental para a reconstituição da hegemonia burguesa de forma global e, particulamente, no Brasil. Em nosso país, Mota (1995) afirma que ocorreu um processo de privatização (Previdência e Saúde) da Seguridade Social nos anos 1990 (governos Collor e Fernando Henrique Cardoso), em que foi segmentado o padrão de cidadania no “cidadão-fabril”, no “cidadão-consumidor” e no “cidadão-pobre”. O primeiro refere-se ao trabalhador das grandes empresas, com acesso aos bens/serviços sociais incluídos no contrato formal de trabalho. O segundo comprará bens e serviços sociais no mercado. Já o último é o trabalhador que, com parcos recursos, será “beneficiário” da pobre política de Seguridade Social.

Em análise sobre a relação dos processos de ajuste neoliberal com o “desajuste social” na América Latina, Soares (2001) afirma que os processos de ajuste aprofundaram o “fosso” existente entre os despossuídos de todos os bens e serviços sociais e aqueles detentores da riqueza socialmente produzida, num continente marcado por uma “heterogeneidade social” histórica, isto é, por sociedades com traços extremamente desenvolvidos – de “1º mundo” – e profundamente arcaicos – próprios de países de “3ºmundo”.

A autora (Soares, 2001) observa que os processos de ajuste neoliberal e o desmonte da Seguridade Social e/ou dos sistemas de proteção social nos diferentes países (Chile, Bolívia, Argentina e Brasil são casos exemplares, embora com especificidades próprias) foram realizados de forma intencional e deliberada, resultado da política neoliberal alastrada globalmente nos anos 1990.

Com tal leitura, Soares (2001) reitera que, se os processos de ajuste neoliberal são resultado de ação política e intencional, é possível optar por outro padrão prevalecente de proteção, não subordinado à política econômica, mas a ela articulado e que reafirme os preceitos constitucionais de 1988.

Numa provocativa opinião, a autora Soares (2001) propõe que, se o projeto neoliberal realizou estudos sobre a pobreza – com uma preocupação restrita ao plano do discurso – e implementou políticas focalizadas para o enfrentamento da pobreza (comprovadamente ineficazes, conforme a autora detalhadamente expôs em sua tese de doutoramento), é imprescindível para a reversão do quadro neoliberal, a focalização da riqueza, isto é, a realização de estudos sobre a riqueza e a sua taxação para o financiamento da política social.

Chama-nos a atenção para a incompatibilidade dos ajustes neoliberais e qualquer objetivo de eqüidade e justiça social. Ao analisarmos o tratamento dispensado à área social (particularmente à área da Seguridade Social) e a realidade brasileira da produção de 32 milhões de indigentes (sendo que a metade destes corresponde à faixa etária infanto-juvenil) – isto é, aqueles que não têm recursos suficientes para o consumo mínimo de uma cesta básica – soma-se ainda o empobrecimento da população assalariada e o crescente grau de informalização (e precarização) do mercado de trabalho, temos, infelizmente, de concordar com as análises de Anderson (1995) sobre o sucesso global do projeto neoliberal.

Ressaltemos, ainda, as observações realizadas anteriormente por Boschetti (2001) quanto às limitações inscritas na Seguridade Social e sua profunda relação com a organização social do trabalho. A autora informa a existência de 40 milhões de trabalhadores não-contribuintes, a maior parte de baixa renda e inserida em relações precarizadas de trabalho. Ou, se quisermos visualizar melhor: de cada cem trabalhadores inseridos no setor privado, 58 não contribuem, o que significa que não tem e não terão acesso a qualquer direito previdenciário. Chama a atenção, ainda, para o fato de que grande parcela desses 40 milhões de trabalhadores constitui-se de trabalhadores precarizados sem o perfil exigido pelos critérios da Assistência Social, de extrema miserabilidade e que estão na condição de excluídos do Regime Geral da Previdência Social e também do “público-alvo” da Assistência Social.

Se economicamente, o neoliberalismo fracassou, pois não obteve o crescimento esperado (sendo inferior aos “anos gloriosos” do capitalismo, entre 1945 e a década de 1960) social e politicamente obteve os resultados almejados: sociedades mais desiguais, a exclusão de milhares de pessoas, a exarcebação do individualismo e a disseminação ideológica dos pressupostos (neo)liberais (Soares, 2001; Matoso, 1996; Pochmann, 2001).

No Brasil, os direitos de cidadania foram duramente abalados no pós-1990: os direitos sociais conquistados a partir da Carta Constitucional de 1988 foram, principalmente nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, cotidianamente desconstruídos através de decretos, medidas provisórias, retenção nos gastos sociais, o que resultou no desastroso percentual de 54% de pobres brasileiros e uma profunda desigualdade, de natureza regional e racial.

No que se refere aos direitos políticos, Carvalho (2001) reconhece uma expansão dos mesmos, principalmente com o emblemático impedimento do presidente Fernando Collor de Mello em 1992/93, sendo este um avanço da prática democrática.

Quanto aos direitos civis, estes retornam ao cenário a partir da Constituição Federal de 1988, com inovações legais e institucionais, como: o direito ao habeas data (qualquer pessoa pode exigir do governo acesso às informações existentes sobre ela nos registros públicos), o “mandato de injunção” (pode-se recorrer à justiça para exigir o cumprimento de dispositivos constitucionais ainda não regulamentados), a definição do racismo como crime inafiançável e imprescritível e da tortura como inafiançável e não-anistiável, a proteção ao consumidor. E, fora da Constituição Federal, a criação, em 1996, do Programa Nacional dos Direitos Humanos, com medidas práticas para a proteção de tais direitos. Foram criados os Juizados Especiais de Pequenas Causas Cíveis e Criminais, em 1995, para o acesso mais ágil e barato à Justiça.

No entanto, Carvalho (2001) alerta para a falta de garantia dos direitos civis, no que se refere à segurança individual, à integridade física, com o aumento da violência urbana, e ao acesso à justiça. Fornece exemplos da violência e o desrespeito aos direitos civis direcionado à população, principalmente aos mais pobres, como os massacres em Eldorado dos Carajás, Vigário Geral, Carandiru, Candelária. Para esta população, 23% das famílias brasileiras que ganham até dois salários mínimos mensais, os direitos civis são uma “ficção”: para eles, o Código válido é somente o Penal.

Após este breve balanço da década de 1990, podemos afirmar que a concepção progressista de Seguridade Social inscrita na Constituição Federal de 1988 e que informava um padrão de cidadania alargado, com direitos civis, políticos e sociais, foi duramente atacada durante os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, com o avanço do projeto neoliberal por todo o mundo e pela América Latina.

Ao iniciarmos o século XXI – com um saldo significativamente regressivo no que diz respeito aos direitos de cidadania, submetidos a uma verdadeira ditadura do capital – tivemos a chegada ao Poder Executivo do ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, cujo histórico de vida associa-se às lutas sociais dos anos 1970 e 1980 por melhores condições de vida e trabalho para a classe trabalhadora. Contudo, as diretrizes da política neoliberal perpetuam-se no atual governo – com o aprofundamento do ajuste fiscal e o corte em gastos sociais - aprofundando a desconstrução do projeto de Seguridade Social delineado nos anos 1980.

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* Datos sobre la autora:
* Larissa Dahmer Pereira
Assistente social, Mestre em Serviço Social pelo PPG/ESS/UFRJ e Doutoranda do PPG/ESS/UFRJ. Coordenadora do site e editora da Revista Agora. E-mail: assistentesocial@assistentesocial.com.br

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